Convidado para abrir a programação acadêmica do 33º Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Contábeis (Enecic), o ex-ministro Ciro Gomes esteve, na noite ontem (16), pela primeira vez no Campus I da UNEB, em Salvador.
Além de ministrar a palestra “A Ciência Contábil em tempo de crise”, o advogado e político concedeu entrevista exclusiva para a Assessoria de Comunicação (Ascom) da universidade.
A conversa foi conduzida pelo tema da educação superior pública e transitou pelas relações entre as instituições de ensino superior, a política e o povo; pelas trocas promovidas entre a academia e os poderes legislativo e executivo; e pelo impacto social do investimento em Ciência e Inovação.
O entrevistado convocou a comunidade acadêmica para “criar uma corrente de opinião”, orientada pela “luz da inteligência, do coletivo, do método”, sobretudo, para a superação de um cenário que ele afirma ser o pior vivido durante a sua vida pública: “eu nunca vi o nosso país em uma situação tão ruim, tão degradante e tão explosivamente ameaçadora como estou vendo agora”.
Leia abaixo a primeira parte da entrevista ou ouça as respostas de Ciro Gomes:
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO (ASCOM) – Em tempos de institucionalização de discursos antiacademicistas e de reincidentes ataques de figuras públicas à academia, onde o senhor acredita que a universidade e os seus representantes – gestores, servidores, professores e estudantes – devem estar no debate público?
CIRO GOMES – Eu tenho repetidamente afirmado, nessa quadra de obscurantismo, de retrocesso, de autoritarismo e de tentativa de testar qual é o limite de resistência que a sociedade civil brasileira que cultiva a democracia está disposta a defender, que o Brasil precisa e nós todos, que temos amor ao nosso povo e ao nosso país, precisamos de três coisas: ideia, exemplo e militância.
A ideia: porque o simbólico, o culto a personalidades, essas superficialidades, essas agendas identitárias, elas não respondem ao drama do medo do futuro que o nosso povo tem hoje e que o predispõe a esse surto autoritário. O medo é o pior conselheiro de todos. Portanto, nós precisamos amadurecer uma ideia.
E nesse assunto da universidade, a ideia básica é muito simples. Embora não esteja no domínio público, absolutamente. Qual seja: não existe civilização desenvolvida sem cadeias produtivas complexas. Não há nenhuma única exceção.
Me choca, por exemplo, ver o [Fernando] Haddad, um homem da universidade, advogar passivamente que o Brasil pode aceitar uma especialização produtiva fora da indústria. Isso não existe. Não há nenhum experimento de desenvolvimento que não esteja caracterizado pela cadeia produtiva complexa, na agregação de valor.
Cadeia produtiva complexa é uma variável imediata do nível de Ciência e Tecnologia acumulado por essa comunidade. Portanto, se você quer imaginar que o Brasil tem que sair do atraso e do subdesenvolvimento, a aposta no Ensino Superior, na pesquisa, na Ciência, na tecnologia e na inovação ou acontece, ou morte, como expectativa de desenvolvimento. Essa é a ideia e os seus desdobramentos para alcançá-la.
O exemplo: especialmente, a universidade precisa superar, de uma vez por todas, aquilo que é um legítimo trauma que sofreu no período autoritário, em que muitos professores e estudantes foram violentados pela ditadura. Ela, para se proteger, desenvolveu uma espécie de cúpula, de “entropismo”.
A universidade precisa sair, de uma vez por todas, dos seus muros. Talvez, mais do que nunca, a extensão, o contato com o mundo real, social e econômico sejam respostas ao drama do atraso brasileiro, da desindustrialização. Por regra, a solução dessas questões está na inteligência universitária brasileira, que tem um extraordinário e fecundo processo, mas, que não está dado ao povo conhecer.
E, terceiro, a militância: que significa sair das agendas legítimas da questão corporativa, do orçamento, dos custeios e ir para a rua. Para a rua mesmo. No simbólico, nós temos a internet. É preciso iluminar o debate, é preciso sair dessa caracterização do culto à personalidade, porque isso é que aperfeiçoa o atraso.
Nós perdemos. É preciso ter humildade para afirmar com toda a categoria que nós perdemos para o que há de mais tosco, atrasado, retrógrado e corrupto. E pior, nós demos a esse tosco e corrupto o discurso da decência. Porque a falha está do nosso lado.
E quem pode curar isso é o pensamento iluminado, inteligente, é apostar em iluminar o debate e sair dessas miudices, do confronto de personalidades, da prostração ideológica ao ódio ou à paixão.
ASCOM – Após percorrer o país para apresentar suas ideias e propostas, o senhor acredita que a universidade se distanciou do povo e das suas necessidades?
CIRO – A Ciência assim parece. E ao povo brasileiro, se nós tivermos humildade, eu sou da comunidade acadêmica, é preciso dizer que, ao povo brasileiro, a universidade fala muito pouco.
O povo tem respeito, mas vê como longe. O povo tem uma aspiração, de um dia um filho poder chegar, mas, vê isso quase que como um desafio intransponível.
E o povo não percebe, e aí não percebe mesmo, a relação utilitária, pragmática, entre os dramas que nós vivemos, que o povo vive e como a universidade pode resolver com inteligência, qualificando a decisão do poder político. Enfim, essa dissociação do pensamento universitário, da vida do povo e, pior, dos tomadores de decisão está no pior momento da história brasileira.
ASCOM – Enquanto ex-integrante dos poderes executivo e legislativo, qual a importância que o senhor acredita ter a interlocução desses representantes com a produção acadêmico-científica e com os pesquisadores da universidade, para se pensar a política e o Brasil?
CIRO – Digo com muita clareza porque estou fazendo essa opção de aceitar todos os convites que o mundo acadêmico me pede. E, não faltam pessoas pragmáticas que gostam de mim dizendo que eu preciso subir o morro e ir para a favela. Olha… eu conheço o morro, a favela, eu venho do sertão do semiárido do nordeste, é a minha formação e nunca perdi uma eleição na minha comunidade.
Mas, neste momento, o Brasil precisa desesperadamente criar uma corrente de opinião. Não precisamos de líderes iluminados. Claro que a luz deve ser a da inteligência, do coletivo, do método.
Porque, vou tomar um exemplo prático agora: eu vi, para outra grave decepção, o Lula dizer que o PT precisa fazer um movimento evangélico. Está errado. O que nós precisamos fazer não é imitar o Bolsonaro, que explora a fé, a boa fé, a religiosidade, o culto ao sagrado de importantes frações do nosso povo.
Nós precisamos ajudar o nosso povo a entender a necessária e imperativa separação da política e da religião. Do fundamento, do porque o Estado precisa ser laico. Porque que o Estado deve ser posto protegido desses fundamentalismos religiosos, seja de que natureza for, para que esse Estado possa proteger a liberdade, a tolerância, a diversidade.
Não é imitando o bolsonarismo que iremos derrotar o bolsonarismo. É ao contrário. É, de novo, iluminando o debate. É mostrando ao nosso povo que todas as vezes em que se misturou política com a manipulação da fé do povo deu em genocídio, morte, barbarismo.
A Inquisição não foi um pecadilho, foram três séculos e meio em que homens, mulheres, crianças, jovens eram assassinados em uma fogueira, pela mera questão de contestar o fato de que a terra não é o centro do universo e sim o sol é o centro do sistema solar. Só por isso, que é uma obviedade que qualquer criança pode repetir, pessoas foram queimadas.
Porque, muitas vezes, o poder político salafrário, desonesto, como é o poder político do senhor Bolsonaro, utilizou a fé do povo, a boa fé do povo, utilizou o culto ao sagrado do nosso povo, para manipular os interesses politiqueiros, subalternos, vis e corruptos, enquanto se fala em Deus, em decência, em honestidade, em combate à corrupção.
São bandidos, mais do que qualquer outro, e não é imitando o banditismo do Bolsonaro que nós vamos resolver o problema.
ASCOM – O senhor costuma promover críticas sobre a priorização de pautas de costumes e identitárias no debate público. Sobre as outras questões. Qual nível de prioridade deve ser dado à universidade, enquanto instituição pública, gratuita, autônoma, inclusiva e de qualidade, dentro das pautas públicas e políticas do país?
CIRO – É o centro de tudo. Não é um agrado o que eu faço com muito prazer à comunidade universitária. Explica a pujança norte-americana… Puxa a ponta do cordão…
Vai achar claramente uma convergência estratégica de um governo empoderado, que lidera valores estratégicos seculares, com um empresariado absolutamente convergente com isso e com um pensamento acadêmico sofisticadamente estimulado, que produz as respostas em todos os campos do desafio humano, nas políticas sociais, nas políticas de serviços públicos, e nas questões estratégicas do próprio desenvolvimento econômico dos seus modelos.
Por que a China está aceleradamente superando, em 40 anos, um atraso violento? Porque iluminou o pensamento acadêmico. A China é quem investe mais em Ciência e Tecnologia no mundo hoje. Por que a Alemanha é a economia mais agressivamente produtiva do planeta terra? Porque acabou de fazer, em cima da excelência extraordinária que tem, um aporte de 160 bilhões de euros. Para fazer com que a universidade agora seja toda ela pública e gratuita, para todo mundo!
A Colômbia, aqui do lado, tem 42 garotos de 18 a 25 anos, a cada 100, com acesso à universidade. O Brasil tem 16. E quando a gente olha a qualidade, dá vontade de chorar. Porque ainda que se possa imaginar boa fé, essa manipulação de Prouni (Programa Universidade para Todos), que na verdade é renúncia fiscal. O FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), que hoje humilha cinco milhões de garotos e garotas inadimplentes com quase R$ 11 bilhões de dívida. Isso tudo privatizou o ensino e desqualificou, por média, o ensino brasileiro, o Nível Superior.
E, não por acaso, o Brasil é decadente. Nós já tivemos 30% da nossa riqueza extraída da uma indústria, quando a China era um décimo disso, ali ontem, em 1980. Hoje nós estamos descendo de 11% e a universidade é onde está a saída. A resposta para tudo isso é a universidade. Claro, que a universidade produzindo ferramentas lúcidas, inteligentes, para que a decisão política se implemente.
Mas, as pessoas são estimuladas a denunciar a corrupção como o grande mal do Brasil e, de fato, é um grande câncer, porque desmoraliza o sistema, faz a população, especialmente o jovem, perder a crença na representação política. Isso desacelera e desmoraliza a democracia. Portanto, não pense que estou falando por menos, a corrupção é um mal extremo, mas, não é o maior mal brasileiro.
O maior mal brasileiro é a incompetência. É a falta de inteligência, de luz na discussão política. Você imaginar que a sorte de uma nação de 206 milhões de pessoas é uma política social compensatória que garante à população comer mal e porcamente. Claro que é importantíssimo também que a pessoa possa comer.
E a questão identitária não é que não seja importante, ela é muito importante. Há um corte de gênero, as mulheres são menos remuneradas do que os homens. Portanto, o feminismo é importante. Há um corte de classe no Brasil, que tem um corte grave de etnia. Os negros são mais assassinados, mais presos, recebem menos pelo mesmo tipo de trabalho. Portanto, não está em mim a censura à agenda identitária, só que a soma dos interesses identitários não é o interesse nacional.
E, muitas vezes, quando, por exemplo, colide com a moral popular, serve de instrumentalização para a direita mais corrupta e reacionária. É só a gente transportar a nossa imaginação para o que está acontecendo no Rio de Janeiro. O maior ajuntamento de intelectuais, artistas, engenheiros, cientistas do Brasil, imprensa, a Associação Brasileira de Imprensa, está tudo lá…
Prefeito: Crivela. Governador: um genocida, Witzel. 70% dos votos em números redondos, não sei o que lá Bolsonaro. Não é possível que a gente não tenha humildade para entender que esse tipo de agenda identitária acabe aperfeiçoando o reacionarismo hipócrita, mentiroso e manipulador.
Ciro Gomes
Foi deputado estadual por duas legislaturas no Ceará, prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, ministro da Fazenda, durante a implantação do Plano Real, e da Integração Nacional.
Leia/ouça também a segunda parte da entrevista de Ciro Gomes à Ascom
Fotos: Danilo Cordeiro/Ascom