Começaram nesta segunda-feira, dia 11 de maio, e seguem até o próximo dia 22, as inscrições para realização das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ano 2020. O cronograma do Exame aponta as datas de 01 e 08 de novembro para realização das provas no formato impresso, e 22 e 29 de novembro para as provas no formato digital.
Assim, para o ano de 2020, o MEC e o Inep mantêm a posição de aplicar o Enem nos mesmos moldes que vem sendo realizado desde 2009, quando as provas deixaram de ser feitas em agosto, como acontecia desde 1998, e passaram a se concentrar entre o final de outubro e início de dezembro.
Em seus 22 anos de história, o Enem se consolidou como principal mecanismo de acesso às vagas oferecidas nos cursos regulares de graduação das instituições universitárias do Brasil. Na Bahia, as quatro Universidades Estaduais – Uefs, Uneb, Uesb e Uesc – oferecem anualmente 11.384 vagas em seus diversos cursos, sendo que, aproximadamente, dois terços destas vagas são preenchidas adotando-se como critério essencial o desempenho do estudante nas provas do Enem.
O desempenho nas provas do Enem é ainda condição essencial para acesso ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), nos casos de egressos do ensino médio que alcancem vaga em instituições de ensino superior não gratuitas e que venham de famílias cuja renda per capita seja inferior a 3 (três) salários mínimos.
A educação, como todos sabem, é definida pela Constituição Federal de 1988 como um dos direitos sociais que devem ser garantidos pelo Estado a todos os cidadãos e cidadãs (cf. Art. 6º da CF). A Carta Magna também se preocupou em estabelecer os princípios gerais mediante os quais o direito social à educação deveria ser efetivado no Brasil:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; […]
VII – garantia de padrão de qualidade.
Desta forma, a garantia de padrão de qualidade na educação e de igualdade nas condições de acesso e permanência na escola são diretrizes constitucionais, tanto quanto a coexistência entre instituições públicas e privadas de ensino e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.
Oito anos depois da Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 9.394/1996) ampliou o leque de princípios essenciais para efetivação do direito social à educação, passando a incluir, entre outros, o “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, a “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” e a “consideração com a diversidade étnicoracial”. A LDB também se preocupou em definir de forma clara os princípios e os fins da educação nacional: “A educação, […] inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Portanto, o compromisso do Estado frente à educação deve ser guiado, essencialmente, pela lógica da cidadania, da democracia, da liberdade e da solidariedade humana.
Para concluir esta incursão nos princípios e fins essenciais da educação brasileira, tais como expressos em nossa legislação, vale lembrar que a Constituição Federal também estabeleceu a necessidade de construção planos nacionais de educação: “A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal” (Art. 214). E o atual Plano Nacional de Educação, instituído pela Lei 13.005/2014, estabelece dentre suas diretrizes, a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”, a “formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade” e a “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental”.
É notório que o avanço da pandemia da Covid-19 em nosso País, à parte seus impactos dramáticos em vidas que nos são tomadas e no funcionamento dos fundamentos da economia, também provocou sérios efeitos nas relações de ensino e aprendizagem.
Com a impossibilidade de manutenção das atividades presenciais, as ações de ensino se encontram hoje dependentes de iniciativas passíveis de ser efetivadas nos ambientes privados e domésticos dos estudantes. Nestas condições, as disparidades e desigualdades sociais impactam decisivamente na efetividade e qualidade das ações de ensino. Famílias caracterizadas pela presença de pais com alta escolaridade e com acesso assegurado a equipamentos e tecnologias de informática e comunicação se mostram em condições muito mais favoráveis de manutenção de ações educacionais do que as famílias que não contam com nenhum adulto com escolaridade em nível médio ou superior, que não têm acesso a computadores ou aparelhos celulares com capacidade para utilização de aplicativos específicos e nem acesso assegurado à internet.
As instituições privadas de ensino médio, até por meio do valor de suas anuidades, efetuam um recorte e definem um perfil econômico-social de seu alunado, ao contrário das instituições públicas que têm a obrigação de atender a todos e a todas que os procuram, em nome do princípio constitucional da educação como dever do Estado e como direito do cidadão e da cidadã. Decorre daí, em plena pandemia, um enorme abismo entre o desenvolvimento de ações educacionais por instituições privadas e por instituições públicas de ensino médio.
Com a pandemia, a casa, o lar, se tornou o lócus essencial da educação. E na história social do Brasil, a casa, o ambiente privado, sempre foi uma das marcas essenciais da distinção social, da afirmação de hierarquias de prestígio, de acesso diferenciado a bens materiais e culturais.
Neste cenário, não concordamos com o posicionamento que vem sendo adotado pelas autoridades competentes do Ministério da Educação (MEC) e pelo Instituto Nacional de Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (Inep) no sentido de manutenção do cronograma tradicional de realização do Enem 2020. Tais autoridades têm evocado dificuldades operacionais e logísticas para admitir o adiamento das provas do Enem, ou, ainda mais incompreensível, afirmado que o Enem não visa “corrigir injustiças”, mas sim “selecionar as pessoas mais qualificadas e mais inteligentes”.
A se manter tal entendimento entre as autoridades educacionais brasileiras, entendemos que se estará atacando frontalmente os princípios e fins da educação brasileira, que focam justamente a dimensão humana, cidadã, social e solidária das ações pedagógicas e não a sua redução a uma perspectiva operacional e individual que sugere que os resultados observados em provas como o Enem são apenas expressão de capacidades e aptidões individuais, quando, na realidade, ressaltam o resultado de uma lógica social prévia, que é injusta, desigual, falsamente meritocrática e essencialmente antidemocrática.
Em todo o mundo, países que adotam exames de ensino médio semelhantes ao Enem, como critério a vagas no ensino superior, estão adiando suas provas em reconhecimento da impossibilidade de se manter uma rotina técnica de desenvolvimento das ações educacionais sem levar em conta os diversos dramas que a Covid-19 impôs na vida de milhões de estudantes e de suas famílias. Por isso, nós, reitores das Universidades Estaduais da Bahia, manifestamos nossa veemente posição contrária à manutenção do calendário de provas previsto para o Enem 2020. Não sabemos exatamente as condições econômicas, sociais e políticas que deveremos enfrentar quando a ameaça da pandemia da Covid-19 estiver afastada. Mas, com toda certeza, quando chegarmos a este momento, não reputamos que será bom para o País constatarmos que prevaleceu o desprezo pelos princípios científicos, sociais e éticos da educação, que deveriam nortear a construção de uma sociedade com mais saber e menos injustiça e desigualdade, em favor de uma lógica individualista e operacional da educação.
Bahia, 11 de maio de 2020
Luiz Otávio de Magalhães
Reitor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Uesb
Evandro do Nascimento Silva
Reitor da Universidade Estadual de Feira de Santana – Uefs
José Bites de Carvalho
Reitor da Universidade do Estado da Bahia – Uneb
Alessandro Fernandes de Santana
Reitor da Universidade Estadual de Santa Cruz – Uesc