Wânia Dias
A pandemia da Covid-19 descortinou os desafios e tensões enfrentados pela educação na contemporaneidade. Falta de investimentos, exclusão digital, currículos engessados e práticas pedagógicas descontextualizadas são alguns dos problemas vivenciados pelo sistema educacional brasileiro há anos, sobretudo, nas escolas localizadas em áreas rurais.
A necessidade de distanciamento social iniciou uma corrida para dar conta das novas demandas educacionais e para manter a rotina e o cronograma escolar. Formou-se, então, um cenário de tentativa e erro que tornou urgente repensarmos a educação e ressignificarmos o fazer pedagógico, para além da frágil transferência de práticas presenciais de ensino para a sala de aula virtual.
Confira, a seguir, entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (Ascom) pela professora Obdália Ferraz, líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Multiletramentos, Educação e Tecnologias (Geplet), vinculado aos programas de pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) e em Educação e Diversidade (Mped) da UNEB.
A pesquisadora destaca as incongruências do sistema de ensino brasileiro e a necessidade de reinventar os modos de ensinar e aprender de forma que o presencial e o virtual se imbriquem. A docente afirma que estamos muito aquém de uma prática educacional condizente com nosso tempo histórico e que o maior desafio “não é pensar em um ensino remoto e sim em uma educação digital”, que permita ao aluno um aprendizado autônomo, contextualizado e conectado.
Nesse bate-papo, Obdália sinaliza que, até então, o que sabemos é muito pouco, afinal, a educação pós-pandemia ainda passeia pelo universo das incertezas. Existem mais perguntas que respostas, mas uma coisa é certa: felizmente, ela não será mais a mesma.
Assessoria de Comunicação (ASCOM) – Há muito tempo grupos de pesquisa como o Geplet tecem diálogos sobre o uso das tecnologias aliadas à educação. Tais discussões sempre permearam o campo das ideias, com algumas aplicações práticas muito pontuais, já que sempre houve muita resistência das escolas e professores. Contudo, fomos pegos de surpresa com uma pandemia que impôs urgentes transformações nas mais diversas áreas da atividade humana, como a educação. Nesse contexto, que desafios têm enfrentado a educação básica, dada a necessidade de reinvenção da prática pedagógica convocada pelo contexto atual?
Obdália Ferraz – Em diálogo com professores que fazem parte de meu projeto de pós-doutorado e com os que integram o Geplet, temos refletido sobre os desafios que os docentes da Educação Básica vêm enfrentando no momento atual em que a pandemia da Covid-19 nos obriga a viver o distanciamento social. São muitos os desafios, vou citar dois que considero importantes para reflexão e ação: a organização da prática pedagógica a partir da mediação tecnológica, uma vez que o uso de aparatos tecnológicos, de plataformas digitais tem se tornado, para muitos professores, obstáculo à realização de práticas didático-pedagógicas significativas e inclusivas; e o outro, do qual depende o primeiro, diz respeito à formação de professores para mediar o processo de aprendizagem em ambientes virtuais. A limitação técnica de docentes – e também de alunos – tem trazido dificuldades para lidarem com as atividades remotas. Além disso, não podemos deixar de registrar aqui que esse desafio é potencializado quando pensamos que nem todos os professores e alunos têm acesso a computadores ou dispõem de uma boa conexão. Certo mesmo é que os professores precisam construir competências, (multi)letrar-se digitalmente para enfrentar esse outro modo de ensinar entre redes, neste momento, mas, após a pandemia, entre redes e paredes, para lembrar Paula Sibília*.
ASCOM – Como sinalizou, quando o assunto é educação por mediação tecnológica é importante levar em conta necessidades inerentes ao ensino remoto, como o acesso a dispositivos conectados à internet, adequação de práticas pedagógicas e da própria rotina escolar. Considerando as desigualdades sociais que atravessam as redes de ensino e as escolas no Brasil, como você avalia o impacto da pandemia na garantia do direito à educação, sobretudo, em comunidades rurais onde os índices de inclusão digital estão entre os piores do país?
Obdália – Este se configura como um momento diferenciado que nos leva a repensar a relação escola-tecnologia. Podemos mesmo usar a palavra “impacto”, neste momento histórico, pois, de modo surpreendente, vimos arrefecer as rotinas de aprendizagem estruturadas e organizadas pela escola, para um ensino entre paredes. O contexto da pandemia termina por contribuir para o desvelamento dos desafios e tensões que a educação do/no campo, os professores do/no campo já vinham enfrentando. Porque as desigualdades de acesso às tecnologias digitais, bem como à internet, sempre constituíram obstáculo na trajetória de estudantes do campo, independentemente da pandemia. A exclusão digital tem criado barreiras que potencializam, cotidianamente, as desigualdades entre os estudantes do nosso país. Descortinou-se, no momento que ora vivemos, o descuido que sempre existiu para com a escola, o professor, o ensino, a educação do campo. Posso dizer que estamos percebendo agora, com mais visibilidade, estes descaminhos, cujos frutos já estávamos colhendo há muito tempo, pela ampla desestrutura tecnológica. Estamos sendo obrigados a repensar agora a oferta desse direito: a educação, seja no/do campo, seja na cidade. Certamente, os que habitam em áreas rurais vivenciam, de modo mais contundente, essa exclusão digital, porque ainda carecemos de gestores nos âmbitos – federal, estadual e municipal – comprometidos com um projeto de educação do campo que, para além do uso de aparatos tecnológicos, de plataformas e de acesso à internet, mova ações que priorizem a formação de cidadãos que se reconheçam não apenas como um fio da grande rede, mas como tecelões.
ASCOM – Muito se fala sobre os impactos da pandemia na educação a partir de um olhar voltado para a manutenção dos cronogramas letivos a qualquer custo. Mas como ficam os professores? A grande maioria dos docentes já utilizava socialmente as redes sociais e algumas plataformas digitais, mas o uso pedagógico desses recursos sempre foi um tabu. O que temos visto, em geral, é a transposição das práticas pedagógicas aplicadas em salas de aulas físicas para as salas de aulas virtuais. Esse é o caminho?
Obdália – Como nos diz Paulo Freire: “Não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos… Escola é sobretudo, gente.”. E o contexto social atual nos revela que precisamos reinventar os modos de ensinar e de aprender, tanto virtual quanto presencial. Se pensamos em uma metodologia única para a sala de aula presencial e para o ensino remoto é porque o desafio de uma educação mediada pelas tecnologias digitais ainda não foi encarado e enfrentado com a profundidade e seriedade exigidas. Aliás, reafirmo que a escola precisará organizar ações de ensino e de aprendizagem em que presencial e virtual se imbriquem; em que o virtual se presencialize e o presencial se virtualize. Ensinar e aprender precisam ser reinventados, tanto no ensino presencial como no virtual. Precisamos pensar não em um ensino remoto, mas em uma educação digital, a qual não se queria encarar, mas veio à tona com a pandemia.
ASCOM – Ainda não existem diretrizes que alicercem a criação de novas metodologias, novas práticas e novos currículos para o ensino remoto. Como diz o ditado popular, “estamos trocando pneu com o carro andando”. Nesse cenário de tentativa e erro que se estabelece a reboque da pandemia, qual seria o primeiro passo sensato para se alcançar efetivamente propósitos pedagógicos em plataformas e ambientes digitais?
Obdália – O primeiro passo será uma formação docente permanente, que contemple os aspectos tecnológicos e pedagógicos da educação, visando contribuir para que educadores possam atuar como mediadores, provocadores, sistematizadores, articuladores e promotores de práticas e eventos de letramentos tão necessários ao desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem apoiado pelas tecnologias digitais. Porque os equipamentos tecnológicos podem ser os melhores e mais potentes, mas eles só funcionarão se o professor tiver condições de atuar como provedor de conhecimento e mediador, num processo colaborativo e interativo, de modo a potencializar e a diversificar as tecnologias digitais para o ensino e a aprendizagem. O professor precisa letrar-se digitalmente para o uso das tecnologias digitais no exercício da docência.
ASCOM – No Geplet são desenvolvidas pesquisas sobre os multiletramentos, um conceito que aponta para a complexidade do educar na contemporaneidade. Para letrar-se na era digital é imprescindível saber articular as múltiplas linguagens existentes além da escrita, como a música, as imagens, os algoritmos. Isso exige do aluno uma leitura crítica e consciente da informação que acessa, principalmente quando o novo endereço da sala de aula é o ciberespaço. De que maneira os pressupostos dos multiletramentos podem ser úteis para a constituição de novas práticas e novos currículos na educação básica pós-pandemia.
Obdália – Eu entendo ser esse um movimento em que os professores estão sendo chamados a pensar como eles, enquanto sujeitos da aprendizagem, poderão aprender com as tecnologias digitais, como poderão pensar em outras práticas, em outras metodologias que se apropriem, efetivamente, da diversidade de linguagens e de meios que os possibilitem agir diferente, inventar outras propostas didático-pedagógicas, recriar a sala de aula. O que significa uma sala e uma aula quando tratamos de tecnologias digitais em rede, quando falamos de multiletramentos que envolvem a multiculturalidade, a qual está dentro da sala, mas está muito mais para além dela também? Essa é a ideia de uma pedagogia dos multiletramentos: a educação pós-pandemia – como antes dela deveria ser – não poderá mais passar ao largo de estudos e práticas de letramentos que envolvam as diversidades culturais, sociais e comunicacionais, que considerem a variedade linguística, a multiplicidade de canais. Então os multiletramentos propõem ao professor pensar sobre “O que” os alunos precisam aprender e “o como”. Creio que a educação não será mais a mesma depois disso. E é bom que ela não seja a mesma. Porque professores e alunos precisam participar ativamente das mudanças sociais. Para tanto, será preciso que se ressignifiquem e se criem novas práticas didático-pedagógicas e comunicativas que envolvam novos gêneros, diversas formas linguísticas.
ASCOM – Diante de tantas transformações sociais, culturais e econômicas, que surgem com a pandemia, que futuro você avista para a educação brasileira?
Obdália – Não temos certeza de nada. Ao contrário, temos muitas dúvidas. Mas sei que a educação não poderá ser mais pensada e estruturada tomando como referência apenas o espaço físico. Os processos de produção de conhecimento que se dinamizam na vida social contemporânea não mais estarão presos ao tempo escolar de quatro ou cinco horas/aula proposto pelo currículo homogêneo e fora do contexto da vida do estudante.
Portanto, vislumbro e aposto em uma educação em que, não sendo mais o professor o centro do processo educativo, será necessário um trabalho colaborativo, movido pela empatia, pela resiliência e pela docência pensada em rede. Pois, se não fizermos parcerias, não seremos bem-sucedidos. Esperamos que haja, na educação pós-pandemia, um contínuo: o professor poderá desenvolver práticas pedagógicas presencias enriquecidas e ampliadas pelas tecnologias digitais, pelas várias linguagens, fazendo uso de plataformas que atendam aos seus objetivos de ensino, com vistas à aprendizagem significativa. Entendo que, à medida que o professor se apropria das multissemioses e da multiculturalidade propiciadas pelo uso das tecnologias digitais, ele poderá criar práticas multiletradas com essas tecnologias. E suas ideias e ações afetarão o mundo, transformando-o em outro mundo possível, um mundo que avança, aceleradamente, para o ciberespaço, sem perder a humanidade, e o respeito à diversidade e à ética.
*A entrevistada refere-se a obra “Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão”, da autora Paula Sibília.
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Obdália Ferraz possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia (UNEB), graduação em Licenciatura Plena em Letras: Habil. Port./Inglês (UNEB); Especialização em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação (UNEB); Mestrado em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Doutorado em Educação (Ufba).
Atualmente, é professora do Curso de Letras/Português do Departamento de Educação (DEDC) do Campus XIV, em Conceição do Coité, e dos mestrados em Educação e Diversidade (MPED/UNEB); e em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB). Realiza estudos de pós-doutorado (PPGLinC/Ufba).
A docente desenvolve pesquisas na área de Educação, com ênfase em Ensino, atuando, principalmente, nos seguintes temas: linguagem, leitura, escrita, plágio, autoria, hipertexto, (multi)letramentos, gêneros textuais/discursivos, letramentos multi-hipermidiáticos, ensino de língua materna e formação de professor.
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