Em 2020, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) celebra os 18 anos da aprovação do seu Sistema de Cotas. Para além de estabelecer um marco para essa história de lutas e garantia de direitos, a instituição cria novas oportunidades para reverenciar muitas outras histórias, sobretudo, da ancestralidade.
Para compreender o panorama que culminou na deliberação da política institucional de ação afirmativa, é preciso puxar o fio da memória. O racismo enquanto tecnologia de opressão e relação de poder já era denunciada há sucessivas décadas no país, sobretudo, pelo Movimento Negro Brasileiro.
Cenário não exclusivo do Brasil, já que no início dos anos 2000 “a despeito dos esforços da comunidade internacional, os principais objetivos das três Décadas de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial não foram alcançados”, conforme registra a Declaração de Durban, da qual o Brasil é signatário.
O documento, assim como o evento no qual foi produzido, são fundamentais para a percepção da necessidade de redefinição do espírito do novo século. Em 2001, foi promovida a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Durban, na África do Sul.
Movimentos negros e de mulheres negras se organizavam para participar desse marco histórico. A UNEB esteve representada nessa preparação pela sua então reitora, professora Ivete Sacramento, que foi convidada, junto a outras intelectuais, como Mãe Stella de Oxóssi, para participar da elaboração do texto que foi entregue pelo país na conferência.
Houve uma verdadeira efervescência dos debates sobre as políticas de ação afirmativa após a “Conferência de Durban”, que contou com anuência internacional da sua declaração e do plano de ação proposto. O evento teve início no dia 31 de agosto e foi encerrado em 8 de setembro de 2001.
Debate, racismo e reparação
Mesmo o Brasil tendo sido subscritor dos vários documentos que se posicionavam de maneira radical contra o racismo, internamente mantinha níveis elevados de desigualdades raciais. O que sinalizava para a urgente necessidade de ações de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, como pontua a atual pró-reitora de Ações Afirmativas (Proaf) da UNEB, Amélia Maraux.
De acordo com a primeira ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Matilde Ribeiro, os conhecimentos sobre ações afirmativas ainda estavam se difundindo entre os brasileiros, no período. “A sociedade brasileira se desarvorava entre grupos a favor e contra. O debate era muito intenso”, relatou, no evento celebrativo pelos 18 anos das Cotas na universidade, em agosto último.
Com o país dividido, mas, ciente dos compromissos antirracistas pactuados e que deveriam ser também implementados pelos estados e suas representações, a primeira reitora negra do Brasil, Ivete Sacramento, solicita a realização de um estudo referencial sobre cotas, para submissão ao Conselho Universitário (Consu), instância máxima deliberativa da UNEB.
“Fomos tidos como autoritários. Ninguém sabia, de fato, o que eram ações afirmativas, o que eram medidas de reparação, e porque estávamos buscando pôr em prática as cotas”, afirma professora Ivete.
A ex-reitora lembra que, à época, um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou que apenas “1% dos negros e negras do Brasil estava nas universidades”. Realidade corroborada por estudo produzido pelo pesquisador Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, que conta com resultados dispostos na Resolução Consu Nº 196/2002.
Então, em cumprimento ao conteúdo da Portaria nº 828/2002, da Reitoria da UNEB, foi instituída uma comissão, composta pelos professores Valdélio Santos Silva e Wilson Roberto de Mattos e o então discente Osni Cardoso de Oliveira, para “elaborar critérios de estabelecimento de quotas para o acesso dos afro-descendentes à UNEB”.
“Já havíamos participado dessas discussões de alguma maneira, o movimento negro já havia discutido isso. Quando chegou na UNEB, levamos em consideração esse histórico anterior. Tínhamos também informações de ações afirmativas já desenvolvidas em outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos e a África do Sul”, destaca professor Wilson.
O parecer resultante desse trabalho se associou, então, às contribuições de um histórico de reivindicações sócio-políticas, de segmentos que se posicionavam em favor das lutas pela democratização e inclusão das populações historicamente discriminadas. E, em 18 de julho de 2002, após debate interno no CONSU, a UNEB aprova a implantação do seu Sistema de Cotas (Resolução nº 196/2002).
Um novo momento
Em seu primeiro ato, a reserva de vagas na universidade previa “quota mínima de 40% para população afro-descendente, oriunda de escolas públicas, no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação e pós-graduação oferecidos pela Universidade do Estado da Bahia, seja na forma de vestibular ou de qualquer outro processo seletivo”.
Eram considerados afrodescendentes, para os efeitos da resolução, os candidatos que se autodeclaravam “como pretos ou pardos, ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE)”.
Para a professora Ivete Sacramento, a autodeclaração foi outro trunfo da ação afirmativa na instituição: “Pela primeira vez, por conta da adoção das cotas, as pessoas tiveram que se autodeclarar. Até então, poucos haviam feito a pergunta: sou afrodescente?”
Dessa maneira, a UNEB foi a primeira instituição de ensino superior (IES) do Brasil a instituir o sistema de cotas raciais a partir de deliberação interna, sem decretos do executivo estadual. Assim, se juntou à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) no pioneirismo das ações afirmativas universitárias. Mas, o momento não era apenas de celebração.
“Foi um dos piores momentos que passei em termos de segurança pessoal e familiar”, relata a professora Ivete, destacando que a confiança na decisão acertada foi consolidada após o recebimento de carta anônima, com teor racista, logo um dia após a aprovação, depois de falar sobre o feito histórico da instituição para uma rede de televisão local (veja transcrição do conteúdo da carta).
Ataques se tornariam ainda mais constantes. Dentre os principais argumentos: a acusação de ser uma política assistencialista e inoportuna; e as expectativas, igualmente preconceituosas, de que os estudantes negros cotistas egressos da escola pública poderiam não concluir seus respectivos cursos e indicariam para uma perda da qualidade do ensino e da excelência das universidades.
“Essas afirmações, que eram mera suspeita ideológica e racista, não surgiram apenas na UNEB, foram nacionais. Mas, foi provado posteriormente que o desempenho dos cotistas não registra diferenças substantivas para os demais. Existe, na média, um desempenho razoável para todos”, salienta o professor Wilson Mattos.
As provas citadas pelo docente constam no artigo intitulado “10 Anos de Ações Afirmativas na UNEB: desempenho comparativo entre cotistas e não cotistas de 2003 a 2009”, resultado de pesquisa coordenada por ele, e desenvolvida em parceria com as pesquisadoras Kize Aparecida Silva de Macedo e Ivanilde Guedes de Mattos.
A análise recebe apoio de Céres Santos, professora da UNEB, que participou também da instituição das cotas na Ufba, em 2004: “Costumo dizer que, na verdade, essa política mostrou o quanto se dimensionava mal o conhecimento dos jovens provenientes do ensino privado, das melhores escolas”.
Ela segue: “Na verdade, esse grupo que sempre viveu dos privilégios e, inclusive, no acesso ao ensino superior, mostrou que não era o que a gente imaginava. E, no fim, quando você coloca os dois grupos, a diferença é muito pequena. Então, podemos ver como o racismo mascara uma realidade”.
Fortalecimento de debates e ações
De acordo com a ex-ministra Matilde Ribeiro, experiências de ações afirmativas como a da UNEB, da UERJ e da Universidade de Brasília (UnB), primeira federal a instituir sistema próprio de cotas, foram referências que contribuíram fundamentalmente para o avanço e qualificação dos debates nacionais sobre o tema.
“Esse processo nacional é bastante rico e estimulador para quem defende as ações afirmativas. Tivemos, sem dúvida, uma vitória nesse debate público e estamos avançando na implementação das cotas mesmo em situações adversas”, destaca a pesquisadora, que atualmente integra o quadro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
No bojo das conquistas citadas pela ex-ministra, estão a Lei Federal nº 10.639/2003, que incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
Na vanguarda dos enfrentamentos, a UNEB avançou para a ampliação do seu Sistema de Cotas já em 2007, com a garantia dos 40% de vagas para candidatos negros e inclusão de novos 5% para candidatos indígenas, nos processos seletivos da graduação e pós-graduação (Resolução Consu nº 468/2007).
A política sofreu mudanças dois anos depois, quando a Resolução Consu nº 710/2009 foi publicada, incluindo a obrigatoriedade dos pleiteantes à reserva de vagas terem “cursado todo o 2º Ciclo do Ensino Fundamental e o Ensino Médio em Escola Pública” e “renda bruta familiar mensal inferior ou igual a 04 (quatro) salários mínimos”.
Já em 2011, a universidade alterou a proposição, e transformou os 5% para indígenas em sobrevagas, que são o quantitativo resultante da aplicação do percentual de cota sobre o número de vagas oferecido por turma/curso (Resolução Consu nº 847/2011).
O êxito institucional em suas ações de inclusão e democratização da educação superior, assim como a ativa participação dos seus pesquisadores nos debates nacionais sobre os temas é, mais uma vez, citado pela professora Matilde Ribeiro como promotor de novas revoluções não só no estado, como no país, a exemplo da Lei Federal nº 12.711.
Regulamentada pelo Decreto nº 7.824/2012, a Lei que ficou conhecida como “Lei das Cotas” garante a reserva de 50% das matrículas por curso/turno “nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos”.
“Cotas não são favor, são um direito. A prova é igual, o acesso é igual. Só não existe a discriminação das pessoas que vêm de escola pública, com o currículo defasado pela ausência de professores, para alunos que vêm de colégios particulares de elite. Aí está a justeza das cotas, que são direito e princípio da reparação que ainda não foi feita”, defende a professora aposentada e proeminente participante do debate sobre ações afirmativas na UNEB, Ana Celia da Silva.