ASCOM Entrevista: Luciano Santos “Chegamos, historicamente, a uma encruzilhada, onde a distopia e a utopia se apresentam muito próximas”

 

Luciano Santos, filósofo

Conhecido por seu discurso coerente, firme e amoroso sobre o mundo e a humanidade, o professor da UNEB Luciano Santos nos presenteou com reflexões sobre a condição humana em tempos pandêmicos em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (Ascom) da universidade.

Luciano,  que é doutor em filosofia, faz uma análise do cenário atual, sinalizando a existência de uma pane na ordem civilizatória que nos rege, a globalização. Para ele, “o poder foi agigantado em detrimento do sentido, produzindo situações cada vez mais insolúveis, que tornam os nossos piores pesadelos cada vez mais normalizados, cotidianos”.

Nesse bate-papo, o pesquisador nos conduz por uma trilha reflexiva potente, indicando que, no mundo pós-pandemia, ousemos “trabalhar por uma mudança de época que seja muito mais que só que a continuação desenfreada de uma época de mudanças, que parece caminhar cada vez mais para o vazio”.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Emergência virou a palavra da vez. Todas as decisões precisam ser imediatas, sejam nas UTIs hospitalares ou na vida política, por exemplo. Quais as consequências desse estado constante de emergência para o futuro da humanidade, principalmente no contexto de desgoverno que vivemos no Brasil?

Luciano Santos: Me parece que a proliferação desses estados de emergência estão a nos dizer que há uma situação planetária de pane na ordem civilizatória que nos rege e que nós chamamos de globalização. Essa pane no sistema com todas as séries de emergências que ela suscita, deve radicalizar uma discussão sobre qual é o sentido do estado como gestor da ordem pública e, especialmente, quais as prioridades que cabem ao estado nesses contextos emergenciais, no sentido de transformar essas prioridades em políticas públicas.

E é evidente que, no caso específico do Brasil, onde nós vivemos numa situação praticamente de anomia, quer dizer, de sistemática, deserção do governo, das suas políticas públicas e do seu compromisso com princípios civilizatórios, essa questão se torna extremamente crucial.  Retomar essa responsabilidade do Estado como gestor da ordem pública é uma questão realmente de sobrevivência coletiva, sobretudo ao que se refere àqueles setores da população que são mais e mais desconsiderados tradicionalmente pelos governos.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Pensando na geopolítica da vacina, no isolamento nacionalista (cada nação por si) e na vigilância totalitária (privacidade hackeada). Que avaliação você faz da condição humana hoje, nesse contexto pandêmico mundial? E no Brasil?

Luciano Santos: Bem, de saída eu gostaria de ressalvar que essa situação de isolamento nacionalista não é propriamente de todos os países, quer dizer, não é uma constituição do nosso contexto, é fruto de uma posição política. Há países, sem dúvida alguma, melhor alinhados com a chamada ordem civilizatória global, que optam por fazer políticas que priorizam não apenas a os próprios setores internos , que já usufruem de maiores poderes econômicos e de maior acesso a direitos e a privilégios.

É preciso também lembrar que há países, e eu destaco um exemplo quase, digamos, paradigmático, que é o de Cuba, onde apesar de todos seus desafios e fragilidades internas, estabelecem ordens de prioridade que não apenas fazem com que se programem para responder as suas demandas internas, dando mais atenção aos vulneráveis, como também se mobiliza no sentido de organizar uma globalização da solidariedade. Quer dizer, prestando ajuda a países, por vezes até tradicionalmente mais desenvolvidos, ou assim, reconhecidos, no que se refere a vacina, atendimento médico e assim por diante.

Gostaria também de lembrar a existência do estado para administrar, gerir necessidades públicas e  não gerir pessoas. Quer dizer, trata-se de intervir nos problemas de ordem pública, especialmente, quando afetam setores desprotegidos, e não controlar a vida dos cidadãos, aí considerados como indivíduos. Então, nesse sentido, é muito importante que, esse contexto pandêmico, nos desperte para questionar qual é a razão e qual é o destino civilizador do estado, em relação aos problemas e às pessoas.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Considerando os caminhos e descaminhos da nossa história, mudanças estruturais como a que experienciamos hoje com a pandemia podem mudar as características primárias da nossa natureza humana? Você acredita que a pandemia é/será um marco evolutivo da humanidade? Seria ela a matriz para a construção de um novo mundo?

Luciano Santos: Bem, eu não estou convencido de que em decorrência da pandemia nós estejamos passando por mudanças estruturais. Isso é justamente o que eu gostaria que acontecesse. Mas, seguramente, estamos vivendo impactos profundos, impactos sísmicos, digamos assim, na nossa ordem civilizatória. Também não sei ou tendo a não acreditar, que essas mudanças que estamos sofrendo a partir da pandemia, tenham exatamente que mudar as características da nossa natureza humana. Mas a minha esperança é de que as mudanças em curso possam oportunizar justamente uma revisão do projeto civilizatório, hoje, definido por impasses, insolvência e irracionalidade sistêmica, onde todo poder do conhecimento e da tecnologia se destina ao acumulo de poder, por uma reduzidíssima minoria da população mundial. Falo de uma revisão que, ao contrário de mudar características da natureza humana, reafirmasse aquilo que justamente é a humanidade em nós. E que se está perdendo com essa forma de organizar a sociedades, de organizar a nossa existência coletiva, que é a que nos trouxe até essa crise.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Você acredita que a pandemia é será um marco evolutivo da humanidade? Seria ela a matriz para a construção de um novo mundo?

Luciano Santos: De fato, o que nos resta e esperar ou apostar proativo, né? Não é justamente a volta ao normal, como no ano passado, por exemplo, no início da pandemia, tanto se suspirava numa espécie de impaciência que o confinamento gera. Trata-se, mais precisamente, da desnaturalização do normal, ou seja, a consideração de que essa tal ordem natural das coisas, de que essa tal civilização humana, ocidental e muito, impropriamente dita cristã, porque de cristã não tem nada, sirva de parâmetro para a nossa organização como sociedade.

Então, de fato, a esperança que fica é que o pós-pandemia, seja o desafio de ousarmos trabalhar por uma mudança de época que seja muito mais que só que a continuação desenfreada de uma época de mudanças, que parece caminhar cada vez mais para o vazio. Quanto mais acelera a engrenagem, mas se precipita para borda do abismo.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Sei que é impossível prever o que virá, mas, considerando a sua área de estudo e empirismo, quando você fecha os olhos e pensa no futuro, o que vê?

Luciano Santos: Nós chegamos, historicamente, a uma encruzilhada, onde a distopia e a utopia se apresentam muito próximas, eu diria mesmo muito!  A distopia quer dizer, toda essa produção de uma ordem civilizatória em que o poder foi agigantado em detrimento do sentido, produzindo situações cada vez mais insolúveis, que tornam os nossos piores pesadelos cada vez mais normalizados, cotidianos.

Mas, justamente, em face disso e em resposta a isso, também vejo que aquelas forças comprometidas com a vida, que alguns chamam de terranos, isto é, aqueles que não apenas se encontram passando pela Terra, mas que levam consigo o compromisso de cuidar da terra na sua integralidade, cuidar das populações humanas, cuidar do meio ambiente, que é a nossa morada, portanto, cuidar de aquilo que faz a nossa existência terrena.  Vejo, pois, esses atores comprometidos não apenas com a sobrevivência, mas com o nosso bem viver. Esperamos que eles se tornem cada vez mais organizados, cada vez mais indignados com o estado a que chegamos e que, portanto, tornem também cada vez mais cotidiana a mobilização de uma política utópica, em vista da transformação dos fundamentos desse sistema insolúvel, inviável, que nos levou até onde estamos.

Portanto, vejo no presente uma perspectiva, nos tempos que se avizinham, de um confronto cada vez mais aberto entre uma possibilidade distópica e uma possibilidade utópica decorrentes do processo histórico que nos trouxe até aqui.

_________________________________

Luciano Santos (ver currículo lattes) é fonte da nossa primeira edição da Reportagem de Capa Pandemia e condição humana: que futuro estamos desenhando para a humanidade? Já conferiu? Clica aqui e nos acompanhe nessa jornada reflexiva sobre o desenho civilizatório que estamos rascunhando para o nosso amanhã.

 

Ascom Entrevista: Núbia Reis “A geopolitização da vacina indica a ausência dos direitos humanos como padrão normativo nas decisões sobre a pandemia”

 

Núbia Reis, cientista social

A Assessoria de Comunicação (Ascom) convidou a professora da UNEB Núbia Reis, cientista social, especialista em ciências políticas, sociologia e direitos humanos para um bate-papo reflexivo sobre a condição humana em tempos pandêmicos, com destaque para as graves e frequentes violações dos direitos humanos durante a tragédia sanitária que vivemos atualmente, sobretudo, no Brasil.

Nesse bate-papo, Núbia aborda dilemas éticos contemporâneos, que perpassam a geopolitização da vacina, vigilância social digital e o isolamento nacionalista das grandes nações frente a essa crise societária universal.

Essa entrevista é um convite à reflexão sobre os desafios para garantia dos direitos humanos em tempos pandêmicos.

Assessoria de Comunicação (Ascom): A pandemia nos colocou frente a frente com diversos dilemas éticos. A vigilância dos cidadãos é um exemplo polêmico. Os governos estão usando o vírus como cobertura para introduzir uma vigilância digital invasiva ou generalizada, como é o caso da China, que utiliza o sistema de vigilância de dados para rastrear cidadãos online e offline. Que avaliação você faz desse cenário? Perigo à vista ou solução estratégica de combate ao vírus?

Núbia Reis: A vigilância social digital não é uma novidade trazida pela pandemia nem é uma exclusividade do governo chinês. Mesmo antes da pandemia, ela era amplamente utilizada como recurso político estratégico e isso independe se o regime político é mais ou menos democrático. De maneira geral, todos os países centrais e, em alguma medida os periféricos, usaram do expediente da vigilância digital para o controle sanitário da disseminação do vírus dentro e fora das suas fronteiras. Israel, por exemplo, anualmente gasta bilhões de dólares com vigilância digital ultrassofisticada como estratégia para a sua segurança, bem como para controle no comportamento dos seus cidadãos na pandemia. Aqui em Salvador, a prefeitura controla a disseminação do vírus a partir de câmeras termais instaladas na estação de transbordo. A economia política de vigilância se situa na tênue fronteira entre os direitos individuais e os direitos coletivos e difusos. Não é uma equação fácil de resolver. Ainda que possa ter fins coletivos, seus excessos são de difícil controle público e violam frontalmente os direitos individuais.  Por isso, os defensores dos direitos humanos reivindicam um esforço global para o controle civil e político, em nível  nacional e transnacional, do uso desses dados para outros fins que não ultrapassem o controle da pandemia.

ASCOM: Pensando em nosso futuro pós-pandemia, qual o impacto dessas ações na manutenção direitos humanos?

Núbia Reis: Bom, eu acho que pós-pandemia é ainda um lugar distante. Eu penso na proteção dos direitos humanos no aqui e agora. A OMS tenta assegurar acesso às vacinas e aos equipamentos de proteção para os países periféricos e mais pobres. A possibilidade de quebra de patente é uma luz no fim do túnel. A questão que se apresenta é qual a efetividade e eficácia dessas ações em curto e médio prazo, pois o vírus parece não respeitar o binômio tempo/espaço da ação política. A resposta a essa questão me parece ser indicativa da “manutenção” dos direitos humanos como marco civilizatório.

ASCOM: A pandemia pode ser um marco importante na história da vigilância?

Núbia Reis: Eu não colocaria nestes termos. A pandemia é um evento que potencializou a vigilância, mas ela já fazia parte da nossa realidade social de muito tempo. Não podemos esquecer o vazamento de documentos e informações confidenciais (inclusive da ex-presidente Dilma foi uma alvo) pelo WikiLeaks  e as denúncias de Snowden sobre o sistema de vigilância global da NASA dos Estados Unidos. Nós deixamos registros digitais mesmo quando não acessamos diretamente computadores ou smartphones. O mais grave nessa história é que esses dados, além de não ter controle estatal ou civil, eles foram usados para definir realidades políticas como as eleições de Trump nos Estados Unidos, em 2016.

ASCOM: Outro dilema ético manifesto é a geopolitização da vacina. Interesses comerciais, disputas históricas entre laboratórios e grandes potências econômicas mundiais. O cenário é caótico e hostil. Os países mais ricos e com maior acesso a tecnologia garantiram logo as suas doses.  Assistimos, por exemplo, nações como o Canadá, ostentar cinco vezes mais doses de vacina do que o necessário para vacinar seus habitantes, enquanto países mais pobres definham e apresentam números alarmantes de óbitos por Covid-19. Do ponto de vista dos direitos humanos o que isso significa?

Núbia Reis: Por um lado, indica a ausência dos direitos humanos como padrão normativo, sociorrelacional e ético-político nas decisões sobre a pandemia. Por outro, é uma excelente oportunidade para testar o poder social dos direitos humanos como pilar civilizatório. Os países centrais que controlam os investimentos, a produção e a distribuição das vacinas têm uma excelente oportunidade para provar que os direitos humanos não são meros recursos retóricos normativos, políticos e morais.

ASCOM: Você acha possível vencer esse vírus com essa postura de isolamento nacionalista ou a cooperação solidária seria o caminho?

Núbia Reis: Racionalmente, todos os caminhos apontam que a cooperação solidaria seria a melhor via para vencer a pandemia. No plano político e pragmático, temos muitos interesses em jogo que não podemos reduzir a um “isolamento nacionalista”. Neste caso, os interesses econômicos sobrepõem claramente os interesses sociais. Mas, a dinâmica do vírus é um teste para a sobrevivência do sistema neoliberal e seu fetiche pelo mercado como  “agência” política e social.

ASCOM: Sei que é impossível prever o que virá, mas, considerando a sua área de estudo e empirismo, quando você fecha os olhos e pensa no futuro, o que vê?

Núbia Reis: Olhando para o Brasil, que e a realidade que vivo, eu vislumbro que teremos muito trabalho para a reconstrução dos direitos humanos como um pilar civilizatório. No caso da pandemia, nós temos o negacionismo, a descrença na ciência, pouco investimento em tecnologia; redução do financiamento das universidades; indicação de medicamento de eficácia não comprovada para tratamento precoce da doença; a compra tardia e insuficiente da vacina pelo governo federal em uma pandemia que já matou quase 450 mil brasileiros (até o presente momento). Por outro, é possível observar um desmonte institucional e um ataque discursivo de autoridades relevantes na cena política na tentativa de ressignificação dos direitos humanos em padrões poucos democráticos e pouco inclusivos. Neste cenário, os grupos historicamente vulnerabilizados – mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, defensores dos direitos humanos e do meio ambiente etc. – têm seus direitos atacados, bem como vivemos sob os auspicio de uma narrativa da ditadura militar como uma revolução social. Enfim, temos muito trabalho pela frente.

____________________________________

Núbia Reis (ver currículo lattes) é fonte da nossa primeira edição da Reportagem de Capa Pandemia e condição humana: que futuro estamos desenhando para a humanidade?. Já conferiu? Clica aqui e nos acompanhe nessa jornada reflexiva sobre o desenho civilizatório que estamos rascunhando para o nosso amanhã.

ASCOM entrevista: Juracy Marques: “O espírito humano está doente. A pandemia foi uma gota que fez a alma transbordar ao longo da nossa jornada evolutiva”

 

Juracy Marques, ecólogo humano

Ancestralidade, cooperação, reconexão com a natureza. Esses são pontos cruciais destacados pelo professor da UNEB Juracy Marques em entrevista sobre o nosso futuro pós-pandêmico, concedida à Assessoria de Comunicação (Ascom) da universidade.

Juracy, que é ecólogo humano, nos inspira com seu olhar realista a respeito dos perigosos caminhos que estamos percorrendo em nossa jornada evolutiva e sobre as mudanças urgentes que precisamos promover em nós, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, para que essa tragédia civilizatória que vivemos hoje, não seja o fim, mas sim o  marco de um recomeço.

Para o pesquisador, “nenhum cidadão desse planeta, deve furta-se ao chamado desesperado que a vida nos impõe”.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Hannah Arendt diz que “Os humanos são responsáveis pela criação contínua de suas próprias condições”. Seríamos, pois, inventores inesgotáveis de nossa própria condição humana?

Juracy Marques: Indiscutivelmente. Isso não quer dizer que pense o mundo, essencialmente, pela dimensão material. Defendo o pressuposto de que há uma causa fundamental para a origem de tudo. Como espiritualista, crítico ao papel das religiões, acredito que o Grande Espírito, por muitos chamados de Deus, Destino, Caos, Olorum, Tupã, Deisnger Inteligente, etc, “é nosso estado de consciência”. Miguel Nicolelis, o “Einstein brasileiro”, no seu mais recente livro “O Verdeiro Criador de Tudo: Como o Cérebro Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos”, escreve que “por volta de 100 mil anos atrás, cada cérebro humano já tinha à disposição por volta de 86 bilhões de neurônios capazes de estabelecer entre 100 trilhões e 1 quadrilhão de contatos diretos, ou sinapses, entre si. De dentro desse atelier neuronal incomensurável, o Verdeiro Criador de Tudo começou a sua obra monumental de esculpir o universo humano como o conhecemos”. Como observamos, as sinapses do nossos cérebro (transformação de estímulos químicos em impulsos elétricos)  são maiores que o número de átomos da nossa Galáxia. Esta citação, a partir de uma teoria cerebrocêntrica, de alguma forma, localista,  sustenta que a vida se resume às aventuras experimentadas pelos nossos cérebros que estão conectados, sincornizados, numa rede que desenha nossos destinos e que Nicolelis nomeou como Brainet.

Tomando a seguinte citação trazida por Goswami, no seu livro “Evolução Criativa”, que diz, “na visão atual, a matéria não evolui até a vida, mas todo o universo material evolui em possibilidades até a primeira célula viva e seu ambiente estarem prontos para manifestar as funções biológicas rudimentares (reprodução e manutenção)”, penso que, a condição humana, com suas dores e sabores, é desenhada num cenário cósmico, também fora do espaço tempo, como ondas de possibilidades, e, não necessariamente, e não apenas biológico-neuronal.

Entretanto, há questões trazidas  na ecologia do cérebro, ou seja, na cerebrosfera, que não podemos subestimar, a exemplo, dos múltiplos comportamentos humanos causados pelos níveis de prazeres (gozo) gerados por nossas interações com a dopamina e outros neurotransmissores. São essas camadas que estão por trás da nova plasticidade civilizatória que atravessamos, mas, dificilmente, relacionaremos uma compulsão por tecnologias ou a desilusão pela vida, o suicídio, mal do nosso século, à atuação dos algoritmos que moldam a nossa percepção da vida, dos nossos gostos e desgostos.

Assim, de inventores da nossa condição humana passamos a ser inventados nessas redes de abstrações mentais que, cotidianamente, nos atravessaram e nos atravessam, na nossa longa jornada civilizatória. Portanto, não há dúvidas que criamos os universos humanos, como as borboletas criam os universos das borboletas, as orquídeas os universos das orquídeas e os vírus, os universos dos vírus. Embora disputemos o controle do mundo com outros seres, particularmente vírus e bactérias, nessas primeiras décadas do século XXI, a nossa espécie está vivenciando o “abismo evolucionário” marcado, sobretudo, pela divinização da tecnologia e do capital. Se continuarmos acreditando nesses dois deuses, nossa espécie experimentará o colapso civilizatório que se avizinha. Precisamos, nesse momento chave da nossa história, fazer uma opção por um modelo de civilização que honre a jornada extraordinária da nossa espécie como forma de celebração da vida, da existência, que é tão maravilhosa.

ASCOM: Mas, com tantas mudanças estruturais em nossa sociedade, que surgem a reboque da pandemia, como ainda é possível manter as características primárias da nossa humanidade, manter aquilo que nos torna humanos?

Juracy Marques: Essa pergunta é marcada por uma inqueitação que trago desde muito tempo: o que, de fato, nos torna humanos? No meu livro “A Ecologia de Freud: Os Ecossitemas da Natureza Humana” mergulho nessas reflexões. De alguma forma vivemos a ilusão de que já superamos a nossa condição animal por uma condição humana. Freud, e muitos outros autores, nos alertam que o animal que fomos ainda nos habita.

Se um primo próximo a nós, nossos irmãos neandertais, chamados, equivocadamente, de “homens das cavernas”, visse a forma destrutiva como estamos estruturando a nossa civilização, acabando com as florestas, construindo armamentos de destruição em massa, causando mundanças nos sitemas climáticos, enchendo o universo de lixo tecnológico, tentando colonizar Marte acreditando no colapso da Terra, enfim, diria que nós somos primitivos demais. Nós somos os homens e mulheres das cavernas digitais.

Voltando à pergunta, há um consenso em muitas ciências humanológicas, que o que marca a passagem do animal para o humano, é o desenvolvimento da linguagem, estruturada na passagem do que chamamos “Revolução Criativa”, datada entre 30 a 70 mil anos atrás. Destaco que estamos falando de um espécie cujos ancestrais datam de mais de 7 milhões de anos e que, por volta de 300 mil anos, já tinha chegado à condição Sapiens. Então, o que carregamos nessa nova roupagem da nossa espécie, como a inerdição do incesto, a dinamização da linguagem, a ritualização da morte e o culto às divindidades, entre outros aspectos, é algo bem recente no nosso comportamento humano e se deve, entre outros fatores, à bipedização e, acredita-se, ao aumento do nosso cérebro.

Poderiamos ir muito longe na reflexão dessa questão, mas simplificaria dizendo que a humanidade da humnidade ainda não chegou, poderá vir se tomarmos a decisão acertada nesse momento crucial da nossa história e, acredito, a crença excessiva no capital e na tencologia, sobretudo, a sedução pela inteligência artificial, tão cultuada por transhumanistas e singularistas, não seja o caminho. Só para dar uma exemplo, mais de 70% das florestas que ainda estão de pé no Planeta, estão em decorrência da forma como os povos tradicionais, particularmente os povos indígenas, se relacionam com a natureza, tendo-a, como algo sagrado.

Então, o futuro da humanidade deve olhar para estes modelos civilizatórios que, historicamente temos pensado como atrasados. O elogio da modernidade, o culto ao modelo civilizatório colonial supremacista, ainda em voga, deve ruir e, no seu lugar, devemos plantar uma nova forma de ver o mundo que está no coração dos povos que amam a natureza e a vida e que não tiveram a alma ressecada pela ganância ao poder, ao dinheiro.

ASCOM: Você acredita que a pandemia é/será um marco evolutivo da humanidade? Seria ela a matriz para a construção de um novo mundo?

Juracy Marques: Poderíamos aprender muito com esta experiência. Como diz Krenak, “o presente é um presente.” Entretanto, como está exposto, os  escarniçadores da Terra, os donos do capital, que só pensam em acumular riqueza, e isso se dá pela destruição da natureza, que é a origem das pandemias, continuaram sua carnificina ecológica sem nenhum pudor na pandemia. Não há limites para a ambição dessa parcela da humanidade. Krenak usou uma metafóra que me agrada muito: “gostaria de colocar todos os biblionários do mundo, que só pensam no capital, dentro de um cofre e tracá-los com o dinheiro deles dentro”.

Certa vez, vi escrito numa aldeia hippie, na Bahia: “está chegando o tempo em que os pobres temerão a fome e os ricos temerão os famintos”. Não podemos ignorar que é a luta pela sobrevivência que ditam as leis da seleção natural.  Então! Vivemos a era dos extremos. Poderíamos ter aprendido muito com as lições trazidas por esta pandemia que já matou 4 milhões de pessoas no Planeta, destes, quase 500 mil irmãos brasileiros. Mas, não! Os donos do capital estão aproveitando esta tragédia civilizatória para aumentar suas riquezas mesmo que isso, possa indicar, o fim da humanidade, e, acho, se eles também  forem humanos, deles.

ASCOM: Reinventamos a nossa humanidade em cada marco evolutivo?

Juracy Marques: Sim, mas essa reinvenção, necessariamente, não quer dizer que estamos tendo vantagens evolutivas. Veja o progresso da ciência e, como consequência, criamos as condições para exterminarmos toda a humanidade, que vantagem evolutiva há nisso? Há mais ganhos nos modos primitivos dos nossos ancestrais, que nas fantasias que cultuamos sobre nosso futuro.

ASCOM: Que civilização a humanidade está desenhando para o nosso futuro pós-pandêmico?

Juracy Marques: Observamos, estamos quase todos traumatizados. O espírito humano está doente. A pandemia foi uma gota que fez a alma transbordar nesse oceano que ficou cheio ao longo da nossa jornada evolutiva. O momento de agora e, pós-pandemia, exigem que tiremos das mãos dos detentores do capital, o controle pelo destino do mundo. Eles não amam a vida, amam apenas o dinheiro. Portanto, o que estou dizendo, claramente, é que, só haverá nosso futuro se o recuperarmos das mãos ecocidas dos detentores do capital, que têm levado, para os desertos da alma, toda a beleza de se viver. Eles são amargos, nunca saberão a grandiosidade de viver uma vida simples, conectada com a natureza, solidário aos nossos semelhantes. Eles não honram a dimensão fundamental para o sucesso evolutivo da nossa espécie: a cooperação.  Suas percepções existenciais são egocentradas. Como diz Davi Kopenawa Yanomami, “eles só sabem escavar as doenças do coração da Terra”. Desejo, mesmo, que nossas vidas pós-pademia, caso não seja normal, ao menos não seja anormal.

ASCOM: Sei que é impossível prever o que virá, mas, considerando a sua área de estudo e empirismo, quando você fecha os olhos e pensa no futuro, o que vê?

Juracy Marques: Quando olho o futuro só vejo a natureza. A reconexão com a natureza é que poderá nos salvar. Dou este conselho a quem está perdido nos cárceres algorítmicos onde nos escravizamos. Vá para a natureza e se salve!

Quando olho para a Natureza sinto-me perto de Deus. Me apaixonam os pássaros, as flores, os rios, o mar… Minha alma vive dessas formas de me encantar pelo olhar. Não sei como descrever, mas meu espírito se vê espelhado na face de Deus refletida na Natureza.

A Ecologia tornou-se, para mim, minha religião. Sou um ecoespiritualista tão perdido nesse universo quanto uma folha jogada às tempestades da existência. Mergulho no Espírito de Deus todas as vezes que entro na alma das flores ou no silêncio das estrelas. Mas, nesta questão, não estou passivo, estou lutando, militando.

Mas, alerto, essa ciência dos sistemas da vida é tão preciosa e tão perigosa. Os debates socioambientais, todos eles, quer os que defendem a conservação das florestas, das montanhas, dos rios e oceanos até aqueles que tratam das pegadas ecológicas da espécie humana, estão sob o controle de uma sofisticada rede do crime organizado que gozam da proteção política e econômica das grandes corporações internacionais. Isso vale para os sistemas de produção de energia, para o mercado das infraestruturas, para as destrutivas atividades minerárias, para a ambiciosa usurpação da biodiversidade e para a inominável teia da exploração e escravização humanas.

Chico Mendes dizia que “fazer ecologia sem luta de classe é praticar jardinagem”. Esse campo não é tarefa para pessoas ingênuas e amadoras. Requer, também, uma posição ética radical que exige de nós negarmos a negação e passarmos a assumir uma postura ética revolucionária com a nossa própria vida. Temos que, de fato, ser a mudança que desejamos para o mundo. E como dizia Disraeli, “o momento exige que os homens de bem tenham a audácia dos canalhas”.

Nenhum ecólogo, nenhum cidadão desse Planeta, deve furta-se ao chamado desesperado que a vida nos impõe. Espero que, quem esteja lendo este desabafo da minha alma, seja mais uma gota nos rios de esperança que alimentam nossa vida oceânica que nesse momento grita.

_____________________________________

Juracy Marques (ver currículo lattes) é fonte da nossa primeira edição da Reportagem de Capa Pandemia e condição humana: que futuro estamos desenhando para a humanidade? Já conferiu? Clica aqui e nos acompanhe nessa jornada reflexiva sobre o desenho civilizatório que estamos rascunhando para o nosso amanhã.

Projeto oferece formação em acessibilidade audiovisual para agentes culturais

A UNEB, através do Núcleo de Educação Especial (Nede), participa do projeto “Editando Sonhos: Jornada Formativa em Acessibilidade Audiovisual”. A iniciativa irá reunir virtualmente, durante o mês de fevereiro, agentes da cadeia produtiva do audiovisual para palestras, minicursos, oficinas e mostra de filmes, qualificando os recursos de acessibilidade em suas produções.

O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia, através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia), via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

Os interessados devem se inscrever até os próximos dias 21 de fevereiro (nas mostras de cinema) e até 18 de fevereiro (nas oficinas). Mulheres, população LGBTQI e pessoas com deficiência atuantes no setor do audiovisual da Bahia são segmentos prioritários da ação, que visa também possibilitar o diálogo entre agentes do mercado audiovisual e produtores de acessibilidade cultural.

Serão cinco oficinas sobre os variados tipos e modalidades de recursos de acessibilidade cultural com especialistas e pesquisadores do mercado local e nacional. Dentre eles, representando a UNEB, estarão a professora Sandra Rosa Farias, que desenvolve a pesquisa Audiodescrição e Linguagem Cinematográfica e a professora Iracema Vilaronga, que possui experiência como audiodescritora em diferentes linguagens artísticas. Isaac Donato, egresso da universidade, também participará da ação ministrando uma oficina de roteiro.

A programação contará também com um festival virtual de cinema, com mostra de curtas baianos produzidos a partir de 2018 com acessibilidade, com quatro filmes a serem premiados no valor de R$ 500. Durante a programação serão exibidos diariamente três filmes de curta-metragem e um de longa-metragem, seguidos de debate entre a equipe e o público.

“Nós fomos motivados pela escassez de formação na área da acessibilidade cultural na Bahia. Existe uma demanda importante por parte do mercado cultural em relação à acessibilidade de seus produtos. Portanto, foi uma oportunidade que a Lei Aldir Blanc nos trouxe e, por outro lado, uma necessidade de promoção dessa formação”, afirma Ednilson Sacramento, um dos produtores do projeto.

Mais informações: projetoeditandosonhos@gmail.com.

 

Ascom entrevista: Obdália Ferraz (Geplet/UNEB) “A educação não será mais a mesma depois da pandemia. E é bom que não seja”

Wânia Dias

A pandemia da Covid-19 descortinou os desafios e tensões enfrentados pela educação na contemporaneidade. Falta de investimentos, exclusão digital, currículos engessados e práticas pedagógicas descontextualizadas são alguns dos problemas vivenciados pelo sistema educacional brasileiro há anos, sobretudo, nas escolas localizadas em áreas rurais.

.

A necessidade de distanciamento social iniciou uma corrida para dar conta das novas demandas educacionais e para manter a rotina e o cronograma escolar. Formou-se, então, um cenário de tentativa e erro que tornou urgente repensarmos a educação e ressignificarmos o fazer pedagógico, para além da frágil transferência de práticas presenciais de ensino para a sala de aula virtual.

Confira, a seguir, entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (Ascom) pela professora Obdália Ferraz, líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Multiletramentos, Educação e Tecnologias (Geplet), vinculado aos programas de pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) e em Educação e Diversidade (Mped) da UNEB.

 A pesquisadora destaca as incongruências do sistema de ensino brasileiro e a necessidade de reinventar os modos de ensinar e aprender de forma que o presencial e o virtual se imbriquem. A docente afirma que estamos muito aquém de uma prática educacional condizente com nosso tempo histórico e que o maior desafio “não é pensar em um ensino remoto e sim em uma educação digital”, que permita ao aluno um aprendizado autônomo, contextualizado e conectado.

 Nesse bate-papo, Obdália sinaliza que, até então, o que sabemos é muito pouco, afinal, a educação pós-pandemia ainda passeia pelo universo das incertezas. Existem mais perguntas que respostas, mas uma coisa é certa: felizmente, ela não será mais a mesma.

Assessoria de Comunicação (ASCOM) – Há muito tempo grupos de pesquisa como o Geplet tecem diálogos sobre o uso das tecnologias aliadas à educação. Tais discussões sempre permearam o campo das ideias, com algumas aplicações práticas muito pontuais, já que sempre houve muita resistência das escolas e professores. Contudo, fomos pegos de surpresa com uma pandemia que impôs urgentes transformações nas mais diversas áreas da atividade humana, como a educação. Nesse contexto, que desafios têm enfrentado a educação básica, dada a necessidade de reinvenção da prática pedagógica convocada pelo contexto atual?

.

Obdália Ferraz – Em diálogo com professores que fazem parte de meu projeto de pós-doutorado e com os que integram o Geplet, temos refletido sobre os desafios que os docentes da Educação Básica vêm enfrentando no momento atual em que a pandemia da Covid-19 nos obriga a viver o distanciamento social. São muitos os desafios, vou citar dois que considero importantes para reflexão e ação: a organização da prática pedagógica a partir da mediação tecnológica, uma vez que o uso de aparatos tecnológicos, de plataformas digitais tem se tornado, para muitos professores, obstáculo à realização de práticas didático-pedagógicas significativas e inclusivas; e o outro, do qual depende o primeiro, diz respeito à formação de professores para mediar o processo de aprendizagem em ambientes virtuais. A limitação técnica de docentes – e também de alunos – tem trazido dificuldades para lidarem com as atividades remotas. Além disso, não podemos deixar de registrar aqui que esse desafio é potencializado quando pensamos que nem todos os professores e alunos têm acesso a computadores ou dispõem de uma boa conexão. Certo mesmo é que os professores precisam construir competências, (multi)letrar-se digitalmente para enfrentar esse outro modo de ensinar entre redes, neste momento, mas, após a pandemia, entre redes e paredes, para lembrar Paula Sibília*.

ASCOMComo sinalizou, quando o assunto é educação por mediação tecnológica é importante levar em conta necessidades inerentes ao ensino remoto, como o acesso a dispositivos conectados à internet, adequação de práticas pedagógicas e da própria rotina escolar. Considerando as desigualdades sociais que atravessam as redes de ensino e as escolas no Brasil, como você avalia o impacto da pandemia na garantia do direito à educação, sobretudo, em comunidades rurais onde os índices de inclusão digital estão entre os piores do país?

.

Obdália – Este se configura como um momento diferenciado que nos leva a repensar a relação escola-tecnologia. Podemos mesmo usar a palavra “impacto”, neste momento histórico, pois, de modo surpreendente, vimos arrefecer as rotinas de aprendizagem estruturadas e organizadas pela escola, para um ensino entre paredes. O contexto da pandemia termina por contribuir para o desvelamento dos desafios e tensões que a educação do/no campo, os professores do/no campo já vinham enfrentando. Porque as desigualdades de acesso às tecnologias digitais, bem como à internet, sempre constituíram obstáculo na trajetória de estudantes do campo, independentemente da pandemia. A exclusão digital tem criado barreiras que potencializam, cotidianamente, as desigualdades entre os estudantes do nosso país. Descortinou-se, no momento que ora vivemos, o descuido que sempre existiu para com a escola, o professor, o ensino, a educação do campo. Posso dizer que estamos percebendo agora, com mais visibilidade, estes descaminhos, cujos frutos já estávamos colhendo há muito tempo, pela ampla desestrutura tecnológica. Estamos sendo obrigados a repensar agora a oferta desse direito: a educação, seja no/do campo, seja na cidade. Certamente, os que habitam em áreas rurais vivenciam, de modo mais contundente, essa exclusão digital, porque ainda carecemos de gestores nos âmbitos – federal, estadual e municipal – comprometidos com um projeto de educação do campo que, para além do uso de aparatos tecnológicos, de plataformas e de acesso à internet, mova ações que priorizem a formação de cidadãos que se reconheçam não apenas como um fio da grande rede, mas como tecelões.

ASCOMMuito se fala sobre os impactos da pandemia na educação a partir de um olhar voltado para a manutenção dos cronogramas letivos a qualquer custo. Mas como ficam os professores? A grande maioria dos docentes já utilizava socialmente as redes sociais e algumas plataformas digitais, mas o uso pedagógico desses recursos sempre foi um tabu. O que temos visto, em geral, é a transposição das práticas pedagógicas aplicadas em salas de aulas físicas para as salas de aulas virtuais. Esse é o caminho?

Obdália – Como nos diz Paulo Freire: “Não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos… Escola é sobretudo, gente.”. E o contexto social atual nos revela que precisamos reinventar os modos de ensinar e de aprender, tanto virtual quanto presencial. Se pensamos em uma metodologia única para a sala de aula presencial e para o ensino remoto é porque o desafio de uma educação mediada pelas tecnologias digitais ainda não foi encarado e enfrentado com a profundidade e seriedade exigidas. Aliás, reafirmo que a escola precisará organizar ações de ensino e de aprendizagem em que presencial e virtual se imbriquem; em que o virtual se presencialize e o presencial se virtualize. Ensinar e aprender precisam ser reinventados, tanto no ensino presencial como no virtual. Precisamos pensar não em um ensino remoto, mas em uma educação digital, a qual não se queria encarar, mas veio à tona com a pandemia.

ASCOMAinda não existem diretrizes que alicercem a criação de novas metodologias, novas práticas e novos currículos para o ensino remoto. Como diz o ditado popular, “estamos trocando pneu com o carro andando”. Nesse cenário de tentativa e erro que se estabelece a reboque da pandemia, qual seria o primeiro passo sensato para se alcançar efetivamente propósitos pedagógicos em plataformas e ambientes digitais?

.

Obdália – O primeiro passo será uma formação docente permanente, que contemple os aspectos tecnológicos e pedagógicos da educação, visando contribuir para que educadores possam atuar como mediadores, provocadores, sistematizadores, articuladores e promotores de práticas e eventos de letramentos tão necessários ao desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem apoiado pelas tecnologias digitais. Porque os equipamentos tecnológicos podem ser os melhores e mais potentes, mas eles só funcionarão se o professor tiver condições de atuar como provedor de conhecimento e mediador, num processo colaborativo e interativo, de modo a potencializar e a diversificar as tecnologias digitais para o ensino e a aprendizagem. O professor precisa letrar-se digitalmente para o uso das tecnologias digitais no exercício da docência.

ASCOMNo Geplet são desenvolvidas pesquisas sobre os multiletramentos, um conceito que aponta para a complexidade do educar na contemporaneidade. Para letrar-se na era digital é imprescindível saber articular as múltiplas linguagens existentes além da escrita, como a música, as imagens, os algoritmos. Isso exige do aluno uma leitura crítica e consciente da informação que acessa, principalmente quando o novo endereço da sala de aula é o ciberespaço. De que maneira os pressupostos dos multiletramentos podem ser úteis para a constituição de novas práticas e novos currículos na educação básica pós-pandemia.

Obdália – Eu entendo ser esse um movimento em que os professores estão sendo chamados a pensar como eles, enquanto sujeitos da aprendizagem, poderão aprender com as tecnologias digitais, como poderão pensar em outras práticas, em outras metodologias que se apropriem, efetivamente, da diversidade de linguagens e de meios que os possibilitem agir diferente, inventar outras propostas didático-pedagógicas, recriar a sala de aula. O que significa uma sala e uma aula quando tratamos de tecnologias digitais em rede, quando falamos de multiletramentos que envolvem a multiculturalidade, a qual está dentro da sala, mas está muito mais para além dela também? Essa é a ideia de uma pedagogia dos multiletramentos: a educação pós-pandemia – como antes dela deveria ser – não poderá mais passar ao largo de estudos e práticas de letramentos que envolvam as diversidades culturais, sociais e comunicacionais, que considerem a variedade linguística, a multiplicidade de canais. Então os multiletramentos propõem ao professor pensar sobre “O que” os alunos precisam aprender e “o como”. Creio que a educação não será mais a mesma depois disso. E é bom que ela não seja a mesma. Porque professores e alunos precisam participar ativamente das mudanças sociais. Para tanto, será preciso que se ressignifiquem e se criem novas práticas didático-pedagógicas e comunicativas que envolvam novos gêneros, diversas formas linguísticas.

ASCOMDiante de tantas transformações sociais, culturais e econômicas, que surgem com a pandemia, que futuro você avista para a educação brasileira?

 

.

Obdália – Não temos certeza de nada. Ao contrário, temos muitas dúvidas. Mas sei que a educação não poderá ser mais pensada e estruturada tomando como referência apenas o espaço físico. Os processos de produção de conhecimento que se dinamizam na vida social contemporânea não mais estarão presos ao tempo escolar de quatro ou cinco horas/aula proposto pelo currículo homogêneo e fora do contexto da vida do estudante.

Portanto, vislumbro e aposto em uma educação em que, não sendo mais o professor o centro do processo educativo, será necessário um trabalho colaborativo, movido pela empatia, pela resiliência e pela docência pensada em rede. Pois, se não fizermos parcerias, não seremos bem-sucedidos. Esperamos que haja, na educação pós-pandemia, um contínuo: o professor poderá desenvolver práticas pedagógicas presencias enriquecidas e ampliadas pelas tecnologias digitais, pelas várias linguagens, fazendo uso de plataformas que atendam aos seus objetivos de ensino, com vistas à aprendizagem significativa. Entendo que, à medida que o professor se apropria das multissemioses e da multiculturalidade propiciadas pelo uso das tecnologias digitais, ele poderá criar práticas multiletradas com essas tecnologias. E suas ideias e ações afetarão o mundo, transformando-o em outro mundo possível, um mundo que avança, aceleradamente, para o ciberespaço, sem perder a humanidade, e o respeito à diversidade e à ética.

*A entrevistada refere-se a obra “Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão”, da autora Paula Sibília.

____________________________________

Obdália Ferraz possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia (UNEB), graduação em Licenciatura Plena em Letras: Habil. Port./Inglês (UNEB); Especialização em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação (UNEB); Mestrado em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Doutorado em Educação (Ufba).

Atualmente, é professora do Curso de Letras/Português do Departamento de Educação (DEDC) do Campus XIV, em Conceição do Coité, e dos mestrados em Educação e Diversidade (MPED/UNEB); e em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB). Realiza estudos de pós-doutorado (PPGLinC/Ufba).

A docente desenvolve pesquisas na área de Educação, com ênfase em Ensino, atuando, principalmente, nos seguintes temas: linguagem, leitura, escrita, plágio, autoria, hipertexto, (multi)letramentos, gêneros textuais/discursivos, letramentos multi-hipermidiáticos, ensino de língua materna e formação de professor.

Saiba mais sobre o Geplet no Facebook.

Ascom Entrevista: “A pandemia potencializou uma deliberada política de morte no sistema prisional brasileiro?” (Riccardo Cappi)

A pandemia da COVID-19 chama atenção para os aspectos sombrios do sistema carcerário do Brasil. Insalubridade, superlotação, dificuldade de acesso à saúde e a falta de transparência do poder público nas ações de controle da doença são alguns dos problemas que tornam um grande desafio salvaguardar vidas encarceradas.

O INFOVÍRUS reúne grupos de pesquisa de Distrito Federal, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia.

Segundo dados do Painel de Medidas de Combate à COVID-19, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, até o dia 15 de junho, foram contabilizados 2.189 infectados e 49 vítimas da COVID-19 nas prisões do país.

Com objetivo de verificar e contrapor informações de órgãos públicos e da imprensa sobre a pandemia do novo Coronavírus no sistema penitenciário, foi criado o observatório “INFOVÍRUS – prisões e pandemias”. A iniciativa reúne pesquisadores de universidades do Distrito Federal, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia, especializados nas áreas de criminologia e estudos sobre desigualdade e discriminação. Entre eles está Riccardo Cappi, professor de Direito da UNEB e da Uefs, e membro da coordenação colegiada do INFOVÍRUS.

Confira, a seguir, entrevista concedida pelo docente Ricardo Cappi à Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB. Nesse bate-papo, o pesquisador e também coordenador do Grupo de Pesquisa em Criminologia (GPCrim UNEB-UEFS), aponta negligências nas medidas de proteção à saúde dos presos, frente ao cenário de pandemia, o que tem resultado no aumento do número de óbitos na população carcerária brasileira. Cappi denuncia ainda a manipulação de dados sobre as contaminações por COVID-19 com o objetivo de camuflar o real impacto do vírus nas unidades prisionais.

Essa entrevista é um convite à reflexão sobre os desafios para garantia dos Direitos Humanos no Brasil e sobre a manifesta política de morte que esteia o sistema carcerário do país.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Quais os impactos da pandemia da COVID-19 no sistema prisional do país?

Riccardo Cappi (RC): O sistema prisional, de uma maneira geral, é um aparelho de reclusão, confinamento e exclusão que, no caso brasileiro, como em muitos países, é caracterizado por condições precárias de vida. A chegada do novo Coronavírus às penitenciárias criou uma enorme ameaça para essas pessoas, que vivem em condições de superlotação, impossibilitando o isolamento social que, sabemos, é a principal medida para conter a propagação do vírus.

No momento, o que observamos é a grande dificuldade de acesso à informação e a existência de focos problemáticos no sistema prisional. Por exemplo, em determinadas prisões aparecem, de uma só vez, 100 pessoas suspeitas ou com confirmação da infecção. Esses casos estão acontecendo em vários estados e, a partir das informações que temos, o sistema diz adotar algumas medidas de distanciamento, mas sem eficácia, já que observamos um aumento significativo no número de óbitos nesses espaços.

ASCOM: Como medidas de prevenção da doença, algumas unidades prisionais suspenderam visitas aos detentos, implantaram o isolamento de internos com casos suspeitos, prováveis ou confirmados, e soltura dos que fazem parte do grupo de risco, além da triagem dos servidores que atuam nesses espaços. Essas medidas são eficazes para impedir que o vírus chegue até as unidades prisionais?

RC: Antes de saber se são eficazes, precisamos saber se são efetivas. Por exemplo, que tipo de isolamento é possível no sistema penitenciário, uma vez que existem, apesar da suspensão das visitas dos familiares, entradas e saídas de funcionários e presos, então isso significa que o isolamento é parcial.

Outra questão importante é ligada ao cumprimento da Resolução 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que orienta o judiciário para evitar contaminações em massa da COVID-19 no sistema prisional. Entre as medidas propostas está a soltura de pessoas de grupo de risco. Sabemos que essa decisão está sendo pouco cumprida no país. Existem notícias de que, até então, foram liberados 30 mil presos, mas cabe questionar: essas solturas aconteceram por que existe um fluxo normal de liberação ou por consequência da Resolução 62?

Uma pesquisa no estado de São Paulo, feita pela Fundação Getúlio Vargas(FGV) e Instituto Insper, mostra que o deferimento de pedidos de habeas corpus para presos pertencentes ao grupo de risco é inferior a 10%. Essa situação é similar no restante do país, ou seja, a resposta do poder judiciário à resolução do CNJ é muito baixa.

Dessa forma, o que acompanhamos é uma sequência de ações e protocolos que, quando são adotados, são mal aplicados devido ao despreparo dos servidores que atuam nesses espaços ou por negligência de seus gestores.

Através de publicações nas Redes Sociais, o INFOVÍRUS denuncia negligências do sistema prisional.

ASCOM: Essa mudança nas rotinas dos detentos e a ausência, muitas vezes total, do contato físico e social com outras pessoas, até mesmo da família, podem causar diversos problemas relacionados à saúde mental. Como você avalia a atuação das unidades prisionais sobre esse aspecto?

RC: Eu diria que quando se fala de prisão estamos com déficit de reflexão e de atuação em relação às consequências psíquicas do isolamento. Em outras palavras, a privação de liberdade produz sofrimentos e expressivas mudanças no sujeito encarcerado, já em tempos ditos normais, podendo ocasionar uma série de transtornos que vão desde a depressão à psicose.

Em situação de pandemia, a esses transtornos são acrescidos pelo menos dois fatores considerados importantes: a incerteza do que vai acontecer na condição de preso, gerando uma ansiedade que é redobrada pelo fato de não se ter contato com pessoas queridas. E o outro fator diz respeito aos familiares que, do lado de fora, se queixam de não saber o que está acontecendo com seus parentes na prisão. Há, inclusive, relatos da dificuldade dos presos de receberem cartas e encomendas dos seus parentes. Todo esse cenário agrava ainda mais a condição do ser humano no contexto de cárcere, ampliando as implicações para sua saúde física e mental.

É importante frisar que a situação dos presos não é comparável ao isolamento em nossas casas por conta do vírus. Temos algumas decisões judiciais que comparam o isolamento dos presos ao isolamento social, o que é um absurdo. Uma coisa é isolamento social e outra é segregação excludente em condições precárias, sem possibilidade de comunicação com os familiares.

ASCOM: Segundo dados do Painel de medidas de combate à COVID-19, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), até o dia 15 de junho, foram contabilizados 2.189 presos infectados pela COVID-19, com 789 suspeitas e 49 mortes, além de 8.708 testes realizados e 1.282 recuperados. Como avalia esses números?

RC: O Painel do Depen nasce como medida de prevenção da crítica, ou seja, para tentar mostrar que está tudo sob controle no sistema penitenciário. As primeiras notas emitidas pelo órgão diziam isso, ousando afirmar, inclusive, que as pessoas estavam mais protegidas dentro das prisões do que fora delas. Essa era a tônica das primeiras declarações do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Era um discurso que dizia: “estamos segregando para o bem”.

Após passar quatro meses da pandemia, deixo para cada um a reflexão sobre os números. Em 27 unidades da federação foram registradas 49 mortes. Significa que, em média, aconteceram menos de duas mortes devido à infecção da COVID-19, por estado. É evidente que esse número não expressa a realidade, denotando uma tendência à subnotificação, ou seja, nem todos os óbitos são informados como deveria. Isso acontece porque existe um problema metodológico, no sentido de não saber o que é contabilizado quando se fala de óbito no sistema. Por exemplo, quando um preso é encaminhado para o hospital em estado grave ou recebe decisão de prisão domiciliar e vem a óbito, ele já não é mais contabilizado nos dados do sistema prisional. Isso é uma maneira de manter os números de contaminados baixos.

Em maio, o Depen implantou no painel a informação dos números de recuperados pela COVID-19. O que acontece é que o número de detectados aumenta improvisadamente para poder afirmar que foram recuperados. Temos situações em alguns estados que o número de recuperados aumenta junto com o de infectados. Trata-se de uma manipulação de dados com o objetivo de transparecer que está tudo dentro normalidade no sistema prisional.

ASCOM: Como analisa a atuação do poder público no combate à COVID-19 no sistema carcerário?

RC: A análise pode proceder por dois caminhos, o primeiro é de anunciar uma ideia de proteção, que é sustentada por dois tipos de medidas, por um lado produzir números que demonstrem a eficácia da atuação do sistema prisional, e do poder público de modo geral, no combate ao vírus, a exemplo do painel do Depen. Por outro, deixar entender que algumas medidas foram tomadas, ainda que algumas delas se revelem extremamente problemáticas, como a proposta de abrigar presos em contêineres. Isso é o primeiro movimento anunciado de proteção à saúde pelo poder público.

O segundo movimento é dizer que as medidas de liberação constituem um prêmio indevido para os presos, porque o estado é intransigente e severo, e cuida da segurança pública através do castigo. Vemos isso claramente na imprensa, quando diz que os presos que foram liberados voltaram a cometer crimes. Essa afirmação se confirma apenas em proporção ínfima de casos, pois as pessoas que saíram do sistema penal são de baixa periculosidade e fazem parte do grupo de risco para a contaminação da COVID-19.

Eu avalio essa política em duas grandes vertentes, de proteção e de castigo intransigente, que no fundo acabam tendo efeitos danosos para a população carcerária. Ou seja, não vamos soltar essas pessoas porque aqui elas são cuidadas de uma melhor forma ou porque se forem liberadas vão gerar problemas de segurança pública e irão se subtrair à prisão ou à punição, supostamente merecida.

ASCOM: Como pesquisador dos Direitos Humanos e do sistema penitenciário do país, acredita que assegurar direitos básicos aos detentos é um desafio para o poder público no período da pandemia?

RC: Na verdade, garantir Direitos Humanos é um desafio para o Brasil há muito tempo, eu diria há tempos imemoráveis. Esse conceito ainda não permeia a consciência política da sociedade. Se a ideia de Direitos Humanos, nos tempos atuais ainda não chegou, imaginem a ideia de direitos para as pessoas que cometeram crimes. Acho que aqui tem o primeiro grande desafio que se agudiza na pandemia, que é entender que as pessoas precisam responder pelos atos que praticaram, dentro do respeito da lei e com dignidade.

Acredito que a pandemia tem um efeito de amplificação de uma pergunta que não cala: estamos voltados para uma política de respeito e cuidado com os presos, visando à inclusão? Ou a pandemia, em função do caos que provoca, oportuniza a promoção intensa e deliberada de uma política de morte?

Sabemos pelos canais de informação que o estado brasileiro é extremamente letal. Vejamos o que acontece com a atuação da polícia, em relação a um grupo específico da população, notadamente de jovens negros, que são os mesmos que constituem a base maior da população carcerária. Em vários momentos, o Brasil já foi criticado por não garantir direitos mínimos aos presos.  A pandemia só faz exacerbar essa condição.

ASCOM: O Grupo de Pesquisa em Criminologia (GPCrim), com quase 12 anos de existência, nasceu com objetivo de estudar questões relacionadas ao sistema penal e as diversas instâncias do controle social, na sociedade feirense, baiana e brasileira. Como coordenador, qual avaliação faz do grupo na contribuição para o amplo debate e produção científica na área da Criminologia?

RC: O grupo de pesquisa foi se constituindo e se consolidando a partir do diálogo com os estudantes. É um grupo que atua, essencialmente, na graduação, porque não temos ainda cursos de pós-graduação em Direito nas universidades estaduais da Bahia.

O GPCrim tem fortalecido a capacidade de pesquisa dos participantes, tanto que a grande maioria dos egressos, que ainda fazem parte do grupo, fizeram carreiras acadêmicas importantes em mestrado e doutorado, e alguns já são professores. Por conta da própria impulsão e pelas experiências dos discentes, o grupo se voltou sempre para estudos do controle social nas vertentes de raça, gênero e classe. Eu diria que a vertente racial é aquela que mais se potencializou nos últimos anos.

Temos contribuições expressivas de pesquisas, essencialmente, qualitativas, sobre o funcionamento do controle social no viés racial, por entender que a raça e o racismo constituem uma dimensão que estrutura o funcionamento do sistema penal, quer seja na atuação da polícia, do judiciário ou no funcionamento das prisões.

O observatório INFOVÍRUS também apoia grupos que reivindicam direitos no âmbito penitenciário.

ASCOM: O projeto “INFOVÍRUS – prisões e pandemias” é uma maneira da universidade se fazer presente na produção de conhecimento, no momento de pandemia, e de dar atenção ao sistema carcerário. Como surgiu a iniciativa e qual a sua importância para o sistema prisional?

RC: A iniciativa surgiu em conversas informais com integrantes de grupos de pesquisa em criminologia. A partir daí, professores manifestaram interesse pela ideia e, assim, avançamos com o projeto INFOVÍRUS. Por sinal, é um nome interessante que diz duas coisas importantes: nós produzimos informação sobre o vírus da COVID-19 e seus impactos, mas também podemos pensar a informação como um vírus, diante das fake news e da falta de transparência do poder público.

Entendemos que o INFOVÍRUS é primordial para a democracia. A nossa intenção é não só de confrontar os números de casos que são divulgados, mas também de contar histórias de vida dessas pessoas, como são tomadas as decisões do sistema de justiça criminal e como determinados grupos reivindicam direitos no âmbito penitenciário.

ASCOM: Qual cenário a COVID-19 pode deixar no sistema carcerário pós-pandemia?

RC: Creio que seja cedo para responder a essa pergunta, mas percebo que o sistema carcerário, não necessariamente, vai se tornar objeto de cuidados específicos, sobretudo, considerando que há falta de cuidado em relação à população brasileira como um todo. Se já não conseguem cuidar das pessoas em liberdade, por que vão se preocupar com os presos? Essa é uma grande inquietação: pensar que o contexto da pandemia justifica a máxima da política de segregação.

O que ronda o pensamento político é a ideia de que pessoas erradas precisam ser excluídas e depois eliminadas. Esse raciocínio é extremamente conservador, de caráter fascista. Trata-se de uma concepção que tende a promover uma uniformização da população em torno da ideia daquilo que é pensado como o bem. E, como consequência, as pessoas que não se adequam a essa configuração ideal precisam ser eliminadas.

Obviamente, um dos vetores desse pensamento é a prática do racismo, porque sabemos que nessa segregação da população existe a questão racial, segundo a qual vidas negras não importam.

ASCOM: De acordo com sua experiência de tantos anos atuando na área da criminologia e de convivência diárias com espaços e rotinas no sistema prisional, que reflexão deixaria sobre a condição humana no cárcere, sobretudo, em tempos de pandemia da COVID-19?

A pandemia nos coloca, de uma maneira geral, diante das nossas escolhas e prioridades, tanto na vida individual quanto social. No que diz respeito à situação carcerária, a pandemia gera um importante questionamento: queremos funcionar segundo os princípios da barbárie? Os grupos subalternizados, acusados de praticarem crimes precisam ser rebaixados à condição de seres não humanos e por isso podem morrer, em nome de uma possível segurança e da insensibilidade da sociedade?

A pandemia oferece a opção de repensar nossa maneira de olhar para as condutas criminalizáveis. Nós temos a possibilidade de ser muito mais criativos nas respostas ao crime, de tecer laços e envolver as pessoas no objetivo de valorizar a vida dos encarcerados.

Nossa dificuldade é não termos capacidade de pensar fora do castigo e da produção de dor para o outro. Precisamos ter sanções que permitam a reparação de danos, que permitam o atendimento às necessidades dos envolvidos no crime. Precisamos pensar políticas de inclusão e de emancipação, que permitam a essas pessoas construírem seus sonhos quando saem do sistema prisional.

________________________________

Riccardo Cappi é doutor em Criminologia e mestre em Ciências Econômicas, pela Universidade Católica da Lovaina, na Bélgica. Há 20 anos atua como professor do curso de graduação em Direito das universidades estaduais da Bahia (UNEB) e de Feira de Santana (Uefs). Possui experiência na área de Direito, com ênfase em Criminologia, desenvolvendo pesquisas sobre criminologia, direitos humanos, delinquência juvenil, racionalidade penal moderna e educação.

 Confira o Twitter e Instagram do observatório INFOVÍRUS – prisões e pandemias.

“Perdemos para o que há de mais tosco, atrasado, retrógrado e corrupto” (Ciro Gomes)

Convidado para abrir a programação acadêmica do 33º Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Contábeis (Enecic), o ex-ministro Ciro Gomes esteve, na noite ontem (16), pela primeira vez no Campus I da UNEB, em Salvador.

Além de ministrar a palestra “A Ciência Contábil em tempo de crise”, o advogado e político concedeu entrevista exclusiva para a Assessoria de Comunicação (Ascom) da universidade.

A conversa foi conduzida pelo tema da educação superior pública e transitou pelas relações entre as instituições de ensino superior, a política e o povo; pelas trocas promovidas entre a academia e os poderes legislativo e executivo; e pelo impacto social do investimento em Ciência e Inovação.

O entrevistado convocou a comunidade acadêmica para “criar uma corrente de opinião”, orientada pela “luz da inteligência, do coletivo, do método”, sobretudo, para a superação de um cenário que ele afirma ser o pior vivido durante a sua vida pública: “eu nunca vi o nosso país em uma situação tão ruim, tão degradante e tão explosivamente ameaçadora como estou vendo agora”.

Leia abaixo a primeira parte da entrevista ou ouça as respostas de Ciro Gomes:

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO (ASCOM) Em tempos de institucionalização de discursos antiacademicistas e de reincidentes ataques de figuras públicas à academia, onde o senhor acredita que a universidade e os seus representantes – gestores, servidores, professores e estudantes – devem estar no debate público?

Ouça a resposta

CIRO GOMES – Eu tenho repetidamente afirmado, nessa quadra de obscurantismo, de retrocesso, de autoritarismo e de tentativa de testar qual é o limite de resistência que a sociedade civil brasileira que cultiva a democracia está disposta a defender, que o Brasil precisa e nós todos, que temos amor ao nosso povo e ao nosso país, precisamos de três coisas: ideia, exemplo e militância.

A ideia: porque o simbólico, o culto a personalidades, essas superficialidades, essas agendas identitárias, elas não respondem ao drama do medo do futuro que o nosso povo tem hoje e que o predispõe a esse surto autoritário. O medo é o pior conselheiro de todos. Portanto, nós precisamos amadurecer uma ideia.

E nesse assunto da universidade, a ideia básica é muito simples. Embora não esteja no domínio público, absolutamente. Qual seja: não existe civilização desenvolvida sem cadeias produtivas complexas. Não há nenhuma única exceção.

Me choca, por exemplo, ver o [Fernando] Haddad, um homem da universidade, advogar passivamente que o Brasil pode aceitar uma especialização produtiva fora da indústria. Isso não existe. Não há nenhum experimento de desenvolvimento que não esteja caracterizado pela cadeia produtiva complexa, na agregação de valor.

Cadeia produtiva complexa é uma variável imediata do nível de Ciência e Tecnologia acumulado por essa comunidade. Portanto, se você quer imaginar que o Brasil tem que sair do atraso e do subdesenvolvimento, a aposta no Ensino Superior, na pesquisa, na Ciência, na tecnologia e na inovação ou acontece, ou morte, como expectativa de desenvolvimento. Essa é a ideia e os seus desdobramentos para alcançá-la.

O exemplo: especialmente, a universidade precisa superar, de uma vez por todas, aquilo que é um legítimo trauma que sofreu no período autoritário, em que muitos professores e estudantes foram violentados pela ditadura. Ela, para se proteger, desenvolveu uma espécie de cúpula, de “entropismo”.

A universidade precisa sair, de uma vez por todas, dos seus muros. Talvez, mais do que nunca, a extensão, o contato com o mundo real, social e econômico sejam respostas ao drama do atraso brasileiro, da desindustrialização. Por regra, a solução dessas questões está na inteligência universitária brasileira, que tem um extraordinário e fecundo processo, mas, que não está dado ao povo conhecer.

E, terceiro, a militância: que significa sair das agendas legítimas da questão corporativa, do orçamento, dos custeios e ir para a rua. Para a rua mesmo. No simbólico, nós temos a internet. É preciso iluminar o debate, é preciso sair dessa caracterização do culto à personalidade, porque isso é que aperfeiçoa o atraso.

Nós perdemos. É preciso ter humildade para afirmar com toda a categoria que nós perdemos para o que há de mais tosco, atrasado, retrógrado e corrupto. E pior, nós demos a esse tosco e corrupto o discurso da decência. Porque a falha está do nosso lado.

E quem pode curar isso é o pensamento iluminado, inteligente, é apostar em iluminar o debate e sair dessas miudices, do confronto de personalidades, da prostração ideológica ao ódio ou à paixão.

ASCOM – Após percorrer o país para apresentar suas ideias e propostas, o senhor acredita que a universidade se distanciou do povo e das suas necessidades?

Ouça a resposta

CIRO – A Ciência assim parece. E ao povo brasileiro, se nós tivermos humildade, eu sou da comunidade acadêmica, é preciso dizer que, ao povo brasileiro, a universidade fala muito pouco.

O povo tem respeito, mas vê como longe. O povo tem uma aspiração, de um dia um filho poder chegar, mas, vê isso quase que como um desafio intransponível.

E o povo não percebe, e aí não percebe mesmo, a relação utilitária, pragmática, entre os dramas que nós vivemos, que o povo vive e como a universidade pode resolver com inteligência, qualificando a decisão do poder político. Enfim, essa dissociação do pensamento universitário, da vida do povo e, pior, dos tomadores de decisão está no pior momento da história brasileira.

ASCOM – Enquanto ex-integrante dos poderes executivo e legislativo, qual a importância que o senhor acredita ter a interlocução desses representantes com a produção acadêmico-científica e com os pesquisadores da universidade, para se pensar a política e o Brasil?

Ouça a resposta

CIRO – Digo com muita clareza porque estou fazendo essa opção de aceitar todos os convites que o mundo acadêmico me pede. E, não faltam pessoas pragmáticas que gostam de mim dizendo que eu preciso subir o morro e ir para a favela. Olha… eu conheço o morro, a favela, eu venho do sertão do semiárido do nordeste, é a minha formação e nunca perdi uma eleição na minha comunidade.

Mas, neste momento, o Brasil precisa desesperadamente criar uma corrente de opinião. Não precisamos de líderes iluminados. Claro que a luz deve ser a da inteligência, do coletivo, do método.

Porque, vou tomar um exemplo prático agora: eu vi, para outra grave decepção, o Lula dizer que o PT precisa fazer um movimento evangélico. Está errado. O que nós precisamos fazer não é imitar o Bolsonaro, que explora a fé, a boa fé, a religiosidade, o culto ao sagrado de importantes frações do nosso povo.

Nós precisamos ajudar o nosso povo a entender a necessária e imperativa separação da política e da religião. Do fundamento, do porque o Estado precisa ser laico. Porque que o Estado deve ser posto protegido desses fundamentalismos religiosos, seja de que natureza for, para que esse Estado possa proteger a liberdade, a tolerância, a diversidade.

Não é imitando o bolsonarismo que iremos derrotar o bolsonarismo. É ao contrário. É, de novo, iluminando o debate. É mostrando ao nosso povo que todas as vezes em que se misturou política com a manipulação da fé do povo deu em genocídio, morte, barbarismo.

A Inquisição não foi um pecadilho, foram três séculos e meio em que homens, mulheres, crianças, jovens eram assassinados em uma fogueira, pela mera questão de contestar o fato de que a terra não é o centro do universo e sim o sol é o centro do sistema solar. Só por isso, que é uma obviedade que qualquer criança pode repetir, pessoas foram queimadas.

Porque, muitas vezes, o poder político salafrário, desonesto, como é o poder político do senhor Bolsonaro, utilizou a fé do povo, a boa fé do povo, utilizou o culto ao sagrado do nosso povo, para manipular os interesses politiqueiros, subalternos, vis e corruptos, enquanto se fala em Deus, em decência, em honestidade, em combate à corrupção.

São bandidos, mais do que qualquer outro, e não é imitando o banditismo do Bolsonaro que nós vamos resolver o problema.

ASCOM – O senhor costuma promover críticas sobre a priorização de pautas de costumes e identitárias no debate público. Sobre as outras questões. Qual nível de prioridade deve ser dado à universidade, enquanto instituição pública, gratuita, autônoma, inclusiva e de qualidade, dentro das pautas públicas e políticas do país?

Ouça a resposta

CIRO – É o centro de tudo. Não é um agrado o que eu faço com muito prazer à comunidade universitária. Explica a pujança norte-americana… Puxa a ponta do cordão…

Vai achar claramente uma convergência estratégica de um governo empoderado, que lidera valores estratégicos seculares, com um empresariado absolutamente convergente com isso e com um pensamento acadêmico sofisticadamente estimulado, que produz as respostas em todos os campos do desafio humano, nas políticas sociais, nas políticas de serviços públicos, e nas questões estratégicas do próprio desenvolvimento econômico dos seus modelos.

Por que a China está aceleradamente superando, em 40 anos, um atraso violento? Porque iluminou o pensamento acadêmico. A China é quem investe mais em Ciência e Tecnologia no mundo hoje. Por que a Alemanha é a economia mais agressivamente produtiva do planeta terra? Porque acabou de fazer, em cima da excelência extraordinária que tem, um aporte de 160 bilhões de euros. Para fazer com que a universidade agora seja toda ela pública e gratuita, para todo mundo!

A Colômbia, aqui do lado, tem 42 garotos de 18 a 25 anos, a cada 100, com acesso à universidade. O Brasil tem 16. E quando a gente olha a qualidade, dá vontade de chorar. Porque ainda que se possa imaginar boa fé, essa manipulação de Prouni (Programa Universidade para Todos), que na verdade é renúncia fiscal. O FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), que hoje humilha cinco milhões de garotos e garotas inadimplentes com quase R$ 11 bilhões de dívida. Isso tudo privatizou o ensino e desqualificou, por média, o ensino brasileiro, o Nível Superior.

E, não por acaso, o Brasil é decadente. Nós já tivemos 30% da nossa riqueza extraída da uma indústria, quando a China era um décimo disso, ali ontem, em 1980. Hoje nós estamos descendo de 11% e a universidade é onde está a saída. A resposta para tudo isso é a universidade. Claro, que a universidade produzindo ferramentas lúcidas, inteligentes, para que a decisão política se implemente.

Mas, as pessoas são estimuladas a denunciar a corrupção como o grande mal do Brasil e, de fato, é um grande câncer, porque desmoraliza o sistema, faz a população, especialmente o jovem, perder a crença na representação política. Isso desacelera e desmoraliza a democracia. Portanto, não pense que estou falando por menos, a corrupção é um mal extremo, mas, não é o maior mal brasileiro.

O maior mal brasileiro é a incompetência. É a falta de inteligência, de luz na discussão política. Você imaginar que a sorte de uma nação de 206 milhões de pessoas é uma política social compensatória que garante à população comer mal e porcamente. Claro que é importantíssimo também que a pessoa possa comer.

E a questão identitária não é que não seja importante, ela é muito importante. Há um corte de gênero, as mulheres são menos remuneradas do que os homens. Portanto, o feminismo é importante. Há um corte de classe no Brasil, que tem um corte grave de etnia. Os negros são mais assassinados, mais presos, recebem menos pelo mesmo tipo de trabalho. Portanto, não está em mim a censura à agenda identitária, só que a soma dos interesses identitários não é o interesse nacional.

E, muitas vezes, quando, por exemplo, colide com a moral popular, serve de instrumentalização para a direita mais corrupta e reacionária. É só a gente transportar a nossa imaginação para o que está acontecendo no Rio de Janeiro. O maior ajuntamento de intelectuais, artistas, engenheiros, cientistas do Brasil, imprensa, a Associação Brasileira de Imprensa, está tudo lá…

Prefeito: Crivela. Governador: um genocida, Witzel. 70% dos votos em números redondos, não sei o que lá Bolsonaro. Não é possível que a gente não tenha humildade para entender que esse tipo de agenda identitária acabe aperfeiçoando o reacionarismo hipócrita, mentiroso e manipulador.

Ciro Gomes

Foi deputado estadual por duas legislaturas no Ceará, prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, ministro da Fazenda, durante a implantação do Plano Real, e da Integração Nacional.

Leia/ouça também a segunda parte da entrevista de Ciro Gomes à Ascom

Fotos: Danilo Cordeiro/Ascom

“Nunca vi o nosso país em uma situação tão ruim, tão degradante e tão explosivamente ameaçadora” (Ciro Gomes)

Convidado para abrir a programação acadêmica do 33º Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Contábeis (Enecic), o ex-ministro Ciro Gomes esteve, na noite ontem (16), pela primeira vez no Campus I da UNEB, em Salvador.

Além de ministrar a palestra “A Ciência Contábil em tempo de crise”, o advogado e político concedeu entrevista exclusiva para a Assessoria de Comunicação da universidade.

A conversa foi conduzida pelo tema da educação superior pública e transitou pelas relações entre as instituições de ensino superior, a política e o povo; pelas trocas promovidas entre a academia e os poderes legislativo e executivo; e pelo impacto social do investimento em Ciência e Inovação.

O entrevistado convocou a comunidade acadêmica para “criar uma corrente de opinião”, orientada pela “luz da inteligência, do coletivo, do método”, sobretudo, para a superação de um cenário que ele afirma ser o pior vivido durante a sua vida pública: “eu nunca vi o nosso país em uma situação tão ruim, tão degradante e tão explosivamente ameaçadora como estou vendo agora”.

Leia abaixo a segunda parte da entrevista ou ouça as respostas de Ciro Gomes:

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO (ASCOM) – Como ex-gestor e pesquisador do Brasil, qual a importância de continuar a participar de eventos como este, promovendo debates com estudantes de graduação e, em especial, com a juventude acadêmica?

Ouça a resposta

CIRO GOMES – Eu brinco sempre que: ou eu faço isso, ou deprimo. Porque eu sofro da doença da lucidez. E eu estou vendo – vou usar uma expressão pouco elegante – a merda que está acontecendo com o Brasil. Eu tenho 40 anos de experiência, e eu nunca vi o nosso país em uma situação tão ruim, tão degradante e tão explosivamente ameaçadora como estou vendo agora.

E eu, diante disso, posso fazer duas coisas: ficar quieto ou lutar. Acho que é meu dever lutar. E é o que eu estou fazendo. E eu luto em boa companhia, porque o jovem brasileiro, especialmente aquele que está tendo a condição de ler, que é o jovem universitário, estudante, é em um só tempo a primeira, e mais grave, vítima dessa decadência, dessa degradação do Brasil. Mas, é nele que está a semente da insurgência revolucionária que eu quero ajudar a acender.

ASCOM – Figuras públicas já o criticaram por uma sugerida dificuldade de tornar suas ideias acessíveis ao grande público. Críticas semelhantes são apresentadas às instituições de educação superior (IES).

Qual caminho o senhor acredita que deve ser trilhado para a inclusão das populações no debate político, de país e sobre a produção acadêmico-científica?

Ouça a resposta

CIRO – Primeiro, resistir a essa pressão vulgarizante, que basicamente replica entre nós do campo progressista a apologia da ignorância. Só que com a apologia da ignorância quem ganha é o Bolsonaro. Bolsonaro vai passar, mas, o bolsonarismo boçal precisa da ignorância para vicejar.

Então, você só faz o que ele está fazendo e ganha eleição, porque ele faz uma aposta na ignorância do povo. E se a gente fizer uma aposta na ignorância do povo, a gente vai perder, além de não ser uma coisa correta.

Eu acho que a ideia tem que ser correta, sofisticada. Não existe solução simples para problemas complexos. Os números têm que ser trazidos. Você pode cometer erros, mas corrige. Mas, o método deve ser o debate da natureza do problema, da solução e da crença de que a solução tem que ser uma obra coletiva. Porque nada sério se faz no lapso de uma vida humana, muito menos de uma vida humana já tendente à vida adulta para velha.

Você imagina que o Ceará conseguiu a melhor educação pública do Brasil ontem? Não, faz 20 anos. Ninguém vai fazer saneamento básico, 14 milhões de pessoas sem teto para morar, sem amadurecer quanto custa, de onde vem o dinheiro e é aí que está o debate. Eles não querem esse debate, porque se a gente o fizer vai ficar muito claro que o Brasil pode. Mas, para fazer isso, nós precisamos ter um ajuste de contas com os poderosos de hoje.

Ou seja, esse é um de dois países no mundo que não cobram tributos sobre os lucros e dividendos das grandes corporações. Só o Brasil e a pequena Estônia. Então, eu estou dizendo que aí tem R$ 70 bilhões, com os quais eu revoluciono a moradia no Brasil. R$ 70 bilhões por ano. Eu liquido essa fatura.

Estou dizendo que o Brasil faz renúncia fiscal, dispensa cobrança de imposto, de R$ 360 bilhões por ano. Se a gente cobrar 20%, temos mais R$ 70 bilhões por ano. Eu digo onde é que vai haver uma revolução na saúde, dizendo quanto custa, de onde vem o dinheiro.

Mas, para fazer isso, eu estou dizendo que vou tomar dinheiro de uma minoria de ultrapoderosos que vão trabalhar no limite do que puderem, e não puderem, para me desmoralizar, calar minha boca, não deixar que eu fale, me desqualificar por adjetivos.

Ora, essa é a essência da luta. Eu vou para quebrar ou ser quebrado. E, um dia, alguém vai ver quem estava com a razão.

ASCOM – O senhor habitualmente apresenta registros do fortalecimento da Educação Básica no estado do Ceará em suas entrevistas. Qual a contribuição da Educação Superior para a consolidação deste cenário positivo?

Ouça a resposta

CIRO – Tudo. Deixa eu dizer com clareza: o Ceará ganhou, na minha gestão de governador, o prêmio mundial de combate à mortalidade infantil. Quem produziu isso? Claro que a decisão política nós tomamos. Mas, quem nos deu a ferramenta? Foi o pensamento acadêmico. A Sociedade Brasileira de Pediatria, a Pastoral da Criança, a universidade, enfim.

O Ceará tem esse processo de Educação Básica e agora já germinou para a educação média. O Ensino Médio do Ceará também já é o melhor do Brasil. Uma de cada três escolas já é tempo integral profissionalizante.

Quem nos deu a luz para isso? Além dos bons exemplos: [Leonel] Brizola, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, foi todo um esforço dos professores, dos nossos mestres, que foram “manualizando” os procedimentos.

Era um processo de tentativa e erro, sempre supervisionado. E eu diria mesmo: o êxito do Ceará é uma variável da universidade, do pensamento científico, acadêmico, que hoje parece até uma coisa ruim. Parece, assim, que se o cara é acadêmico, é um idiota, um pária.

Mas, isso é o que predispõe o Brasil ao lulopetismo corrompido e ao bolsonarismo boçal, um se sustentando no outro e os dois se sustentando na ignorância do povo. Ou a gente muda isso, ou o Brasil não tem muita sorte como nação.

Ciro Gomes

Foi deputado estadual por duas legislaturas no Ceará, prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, ministro da Fazenda, durante a implantação do Plano Real, e da Integração Nacional.

Leia/ouça também a primeira parte da entrevista de Ciro Gomes à Ascom

Fotos: Danilo Oliveira/Ascom

UNEB, 36 anos: Agricultura familiar e desenvolvimento regional (Ascom entrevista Danilo Gusmão – NEPPA)

Wânia Dias

Ampliação do potencial produtivo do gado durante longos períodos de seca. Transformação de resíduos da atividade agrícola em energia limpa e de baixo custo. Aumento da produção e da qualidade do leite em pequenas propriedades. Melhoria do rebanho caprino e ovino.

Esses são alguns resultados de pesquisas e projetos de extensão desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Produção Animal (NEPPA) da UNEB, que beneficiam milhares de agricultores familiares do Oeste da Bahia.

 Coordenado pelo professor Danilo Gusmão, desde sua implantação, em 2004, o NEPPA é vinculado ao Departamento de Ciências Humanas (DCH) do Campus IX da UNEB, em Barreiras, e, ao longo dos anos, vem expandindo suas pesquisas e costurando parcerias nacionais e internacionais, consolidando-se como um importante polo de inovação e desenvolvimento tecnológico agrícola.

 Cerca de 105 municípios baianos são beneficiados direta e indiretamente por ações do núcleo, a partir do fortalecimento de laços entre a universidade e a comunidade, sobretudo através da difusão do conhecimento científico, da valorização dos saberes populares.

Confira, a seguir, entrevista concedida pelo professor Danilo Gusmão, conhecido como o agrônomo do povo, à Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB sobre pesquisa, desenvolvimento social e econômico e, principalmente, sobre o poder transformador da ciência do conhecimento que, para Gusmão, “devem ser levados para quem precisa”.

 Hoje, com 36 anos, a UNEB comemora os 15 anos de atividades do NEPPA, um núcleo que escreve, junto com todos nós, Uma história de toda a Bahia.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Em que contexto e com qual objetivo surge o NEPPA?

Danilo Gusmão (DG): O NEPPA surgiu, em 2002, a partir do esforço conjunto de professores e estudantes do curso de Engenharia Agronômica, ofertado no Campus de Barreiras. Em 2004, o Conselho Universitário (Consu) da UNEB chancelou a criação do núcleo, que passou a figurar entre os principais polos de pesquisa e inovação da universidade.

A produção animal era ainda incipiente e pouco rentável no oeste da Bahia, uma região que, mesmo rica em grãos, importantíssimos para alimentação do gado, não conseguia desenvolver a pecuária, a cadeia produtiva de carne e do leite. Essa realidade alimentava o êxodo rural, afinal, a falta de condições dignas de sobrevivência no campo, em termos sociais e econômicos, faz com que as pessoas migrem para as cidades.

Nesse contexto nasce o NEPPA, que percebeu na região um potencial agrário gigantesco, mas desvalorizado. Foi assim que descobrimos a nossa missão enquanto pesquisadores, produtores e multiplicadores de conhecimento: desenvolver tecnologia para melhorar a vida das pessoas, para criar oportunidades no campo.

Dia de campo: orientações sobre cultivo do sorgo forrageiro desde o plantio até a colheita.

O NEPPA desenvolve trabalhos em várias frentes relacionadas à produção animal, que perpassam o ensino, a pesquisa e a extensão. Desenvolvemos cursos e capacitações gratuitas para a população do campo, estudos nacionais e internacionais que nos permitem desenvolver tecnologia de ponta. Temos diversos projetos na área de produção e armazenamento de forragens para alimentar o gado na seca, pesquisas sobre energia renovável produzida a partir de resíduos da atividade agrícola, ações voltadas para o aumento da produção e qualidade da pecuária leiteira, melhoria do rebanho caprino-ovino e muitas outras iniciativas.

É importante destacar que o NEPPA se fortaleceu ainda mais com a criação do curso de Medicina Veterinária em nosso departamento e, dada a criação de programas que contemplam projetos de pesquisa, ensino e extensão, buscamos parcerias estratégicas para expandir suas atividades que alcançam praticamente todas as regiões do estado.

Somos, até hoje, o único centro de produção animal da região e todas as pesquisas que desenvolvemos culminam em atividades extensionistas que chegam aos pequenos produtores rurais, criando oportunidades reais de crescimento social e econômico. Quando o produtor consegue alcançar seus objetivos, além dos ganhos financeiros, existe uma mudança emocional e social. Trata-se de um processo de autovalorização do trabalho e também das competências individuais. É bonito de acompanhar, é emocionante perceber o poder transformador do conhecimento.

ASCOM: O NEPPA possui vasto estudo sobre alternativas para alimentação do gado na seca. O Projeto Esperança atua diretamente com os agricultores familiares visando atenuar os danos da estiagem. Como funciona essa iniciativa e qual  seu impacto para a qualidade de vida dos pequenos produtores e para a economia baiana?

Projeto Esperança – distribuição de mudas de amendoim forrageiro para o pequeno produtor.

DG: A Bahia é muito rica em plantas forrageiras, que são aquelas que servem de alimento para o gado, possibilitando o desenvolvimento da produção animal, importante para o nosso estado. Contudo, em períodos de estiagem tudo muda. A única certeza que temos no campo é que a seca chegará. Não sabemos se será curta ou longa, mas ela virá e o gado precisa ser bem alimentado para que a produção não seja comprometida. Na estiagem, o animal emagrece, perde força reprodutiva ou até morre por falta de comida. Esse é o principal problema do agricultor familiar, que, nesses períodos, precisa comprar comida para o animal a um custo altíssimo, o que prejudica o volume e a qualidade da produção, a comercialização e, de forma mais ampla, o desenvolvimento econômico da região.

O “Projeto Esperança: lado a lado com o produtor rural na convivência com a seca” surge nesse contexto. Começamos indo até o pequeno produtor ensinando, orientando quanto à produção e armazenagem de forragens para manter suprimentos durante a seca. Organizamos cursos, workshops, oficinas, estudos de campo. Mas, percebemos que essas ações não eram suficientes. Os agricultores aprendiam a tecnologia, iniciavam o processo, mas não seguiam adiante. Foi então que resolvemos promover uma intervenção mais direta e, além da orientação sobre o manejo e conservação das forragens, iniciamos a distribuição gratuita de mudas de plantas forrageiras para produtores e associações. Essas mudas são replantadas e doadas para a vizinhança. Assim criamos uma rede de multiplicadores e o alcance do projeto se ampliou exponencialmente. Nesse processo, a pesquisa avançou, fomos criando mudas melhoradas e mais resistentes à seca.

Esse projeto vem mudando consideravelmente a produção animal no nosso estado. Começamos em sete municípios baianos e agora já alcançamos mais de 100.

ASCOM: O setor leiteiro baiano produz anualmente 858 milhões de litros de leite e a maior parte vem de propriedades com pequena escala de produção. Como você avalia o desenvolvimento da cadeia produtiva do leite na Bahia? E qual o papel do Neppa nesse contexto?

DG: O litro de leite pago ao produtor é mais barato que uma lata de refrigerante. Um produtor de leite recebe, em média, R$ 1,20 reais por litro e o custo para produzi-lo é metade desse valor. E, se levarmos em conta que a média de produção de um pequeno produtor em nosso estado é de 40 litros por dia, a situação fica ainda mais preocupante. Para que o leite seja, de fato, uma fonte de sustento é necessário produzir muito e com qualidade. Foi nessa perspectiva que criamos, em 2015, o projeto “Nosso Leite Nossa Renda: A pecuária leiteira como ferramenta de transformação social”, cujo principal objetivo é aumentar a produção de leite e garantir o sustento de milhares de famílias que lidam com a atividade. Isso não significa necessariamente o aumento do número de animais, mas sim da produtividade do animal e da capacidade de suporte da propriedade.

O NEPPA atua em toda a cadeia produtiva do leite dando apoio e orientações aos produtores.

O NEPPA atua em toda a cadeia produtiva do leite dando apoio e orientações sobre melhoramento genético, alimentação, instalações funcionais e baratas, manejo e saúde dos animais, manejo e higiene da ordenha, na conservação do leite, e na organização da comercialização. Nosso objetivo é que o leite seja um diferencial e que ajude muitas pessoas.

O projeto começou em cinco municípios e hoje está na Bahia inteira, por meio de parcerias estratégicas com diversas entidades. Atualmente, estamos montando o laboratório do leite, o ANALEITE, no curso de Medicina Veterinária, ofertado no Campus da UNEB, em Barreiras. Com esses novos equipamentos, poderemos auxiliar ainda mais os produtores da região, principalmente no que se refere à qualidade do leite que chega à mesa do consumidor.

ASCOM: Em 2009, o NEPPA ganhou projeção internacional com o Programa Renova Bahia. Conte-nos um pouco sobre essa iniciativa e sobre a sua importância para o desenvolvimento sustentável da agricultura?

O Renova Bahia usa biodigestores para desenvolvimento sustentável da agricultura.

DG: O Renova Bahia abriu muitas portas, através dele as ações do NEPPA ganharam o mundo. Basicamente o programa usa biodigestores para desenvolvimento sustentável da agricultura, aproveitando dejetos de animais para produzir biogás e biofertilizante. Isso permite a produção de energia limpa e de baixo custo para o agricultor familiar, substituindo o gás de cozinha e a energia elétrica, a partir do aproveitamento dos recursos naturais ou subprodutos, resíduos da própria propriedade. Além disso, o uso das tecnologias de energias renováveis pode ter fins produtivos, atuando no processamento dos produtos para agregar valor. A ideia é promover economia e também possibilitar geração de renda para o agricultor familiar.

Fomos pioneiros no uso de energias renováveis na Bahia. Apresentamos essa pesquisa em vários países do mundo, especialmente da Europa. Foi um projeto premiado que, inclusive, virou livro e documentário homônimos: Biodigestor na agricultura familiar do semiárido. Essas obras, assim como todas as produções científicas do NEPPA, estão disponíveis no site www.neppa.uneb.br.

ASCOM: Em 2019, a UNEB completa 36 anos, fortalecendo a cada dia sua vocação social e inclusiva. De que forma o NEPPA ecoa esse papel social?

DG: É importante começar dizendo que sem educação, sem construção e difusão do conhecimento, nenhum desenvolvimento é possível. Se a tecnologia criada a partir das pesquisas e estudos não chegar a quem precisa, nada faz sentido. É a partir dessa premissa que o NEPPA atua, por isso, para nós, a extensão é basilar. A pesquisa produz a tecnologia, mas é a extensão que a populariza.

A maioria dos cursos de Agronomia e Veterinária se alicerça em um currículo fechado, limitado a laboratórios e salas de aula, com poucas atividades de campo que, quando acontecem, são engessadas e apenas margeiam a realidade do produtor rural. Na UNEB, especificamente no Campus de Barreiras, a nossa proposta de ensino é diferente. Entendemos que não há como falar do produtor, sem o produtor. Não há como falar do campo, sem vivência no campo. O percurso formativo do estudante perpassa sim o laboratório, a sala de aula, mas valorizamos muito a efetividade do conhecimento que é transmitido, e, principalmente, o conhecimento que emerge do próprio campo, do povo, da lida diária com o que estudamos. Esse saber é muito precioso para a formação do estudante.

O NEPPA realiza diversos cursos sobre manejo de pastagens e alimentação do gado na seca.

O NEPPA possui um projeto muito bonito, que está alinhado com a missão social da universidade, chama-se Educampo. É um projeto piloto de inserção de conteúdo agrícola e ambiental em escolas de educação básica, na zona rural. Cerca de 90% dos alunos ajudam a família na atividade agrícola. Esses jovens possuem uma grande experiência prática, mas, em geral, desconhecem os aspectos técnicos. A ideia do Educampo é, além de unir teoria e prática, criar uma mão dupla de construção do conhecimento. Os estudantes de Engenharia Agronômica vão até as escolas ensinar técnicas de plantio de hortas, de produção de mudas frutíferas, melhorias nas técnicas de criação. Em contrapartida, aprendem muito com a experiência prática dos estudantes da educação básica, já familiarizados com a rotina do campo.

O projeto está parado há algum tempo por falta de recursos para a sua manutenção, mas continuamos em busca de investimentos e parcerias para torná-lo ativo novamente. Trata-se de uma iniciativa linda, com inúmeros benefícios para todos, além de oportunizar o resgate do orgulho de ser agricultor, a partir da valorização do trabalho e do profissional do campo. Esse é, sem dúvidas, o projeto que mais me deu satisfação pessoal.

ASCOM: Que balanço você faz das ações do NEPPA nesses 15 anos de atividades e quais os planos para o futuro?

DG: A pesquisa engajada e participativa desenvolvida lado a lado com o povo do campo e demais parceiros estratégicos nos permitiu, ao longo desses 15 anos, assistir diretamente mais de cinco mil famílias de agricultores. Indiretamente esse número é muito maior. A estimativa é que a capilaridade de nossas ações chegue a mais de 50 mil famílias. São números expressivos, que nos enchem de orgulho, nos motivam.

O trabalho da UNEB, através do NEPPA, é reconhecido e respeitado porque é desenvolvido de forma dedicada, imersiva e acolhedora. Todas as nossas ações são orientadas pela busca por transformações que oportunizem melhores condições de vida para o povo do campo. Esse é, inclusive, um pilar importante da formação dos nossos estudantes. Diversos egressos do curso de Engenharia Agronômica já são mestres e doutores e, hoje, integram o quadro docente da própria UNEB, replicando esse formato de ensino humanístico.

Para o futuro, nosso foco é a internacionalização. Já firmamos algumas parcerias com instituições estrangeiras, a partir do projeto de bioenergia. Graças a ele temos parceiros na Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido, e novos convites continuam chegando. Agora pretendemos ampliar a ação internacional no campo da produção animal também. Assim, o NEPPA segue fortalecendo o que já construímos, mas com o olhar sempre adiante.

Veja outras matérias desta série:

UNEB, 36 ANOS: UMA HISTÓRIA DE TODA A BAHIA
UNEB, 36 ANOS: Universidade já atendeu 13,3 mil jovens e adultos em educação do campo
UNEB, 36 ANOS: Universidade é destaque nacional em programas de iniciação à docência

Fotos: Arquivo NEPPA.

 

Fotos: Arquivo NEPPA.

Ascom Entrevista: “Ecossocioeconomia: uma gestão que privilegia outra economia” (Carlos Sampaio/FURB)

De acordo com recomendações da Organização Mundial do Turismo (OMT), o Turismo pode ser definido como “atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e permanência em lugares distintos dos que vivem, por um período de tempo inferior a um ano consecutivo, com fins de lazer, negócios e outros”.

Mas, e se extrapolarmos esse conceito e passarmos a pensar não apenas no turista, mas também nas comunidades que os recepcionam? E se a própria comunidade pudesse empreender esforços e deliberar coletivamente sobre os seus projetos e atrativos? E se, solidariamente, todos que compõem essa rede, e mesmo os que não compõem, pudessem ser beneficiados por suas ações?

Todos esses questionamentos estão sendo feitos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros que se debruçam sobre as Ciências Ambientais e sua relação com o Turismo, e que trabalham com conceitos como o de Ecossocioeconomia.

As respostas ainda estão em construção e nos levam a temas como o Turismo de Base Comunitária e a Economia Solidária, como manifestações dessa “outra forma de pensar a Economia”.

Um desses pesquisadores é Carlos Alberto Cioce Sampaio. Administrador, mestre e doutor nas temáticas planejamento e gestão organizacional para o desenvolvimento sustentável e pós-doutor em Ecossocioeconomia, ele coordena o Núcleo de Ecossocioeconomia (NEcos), da Universidade Federal do Paraná (Ufpr), e é docente da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb).

O professor foi um dos convidados do VIII Encontro de Turismo de Base Comunitária e Economia Solidária (ETBCES) da UNEB, realizado nos dias 9, 10 e 11 de julho, no Campus I da Universidade, em Salvador. Ele ministrou a conferência de abertura do evento, intitulada “Ecossocioeconomias: um conceito em construção”.

Em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (ASCOM) da UNEB, Carlos Sampaio apresentou detalhes de ideias relacionadas ao conceito, sob a denominação de Turismo de Base Comunitária, diferenças entre a proposição e como atua a Indústria Convencional do Turismo, e ainda avaliou a experiência do projeto da universidade Turismo de Base Comunitária no Cabula e Entorno (TBC Cabula), o qual considerou de “vanguarda”. Veja abaixo:

Assessoria de Comunicação (ASCOM): O conceito de Ecossocioeconomia é tão difícil de ser compreendido como é para ser pronunciado?

Carlos Alberto Cioce Sampaio (CACS): A Ecossocioeconomia é um conceito não muito amigável. Justamente por isso, sempre uso como sinônimo: uma gestão que privilegia uma outra economia. As Ecossocioeconomias são experiências que acontecem no cotidiano.

Normalmente, elas não são experiências de construções teóricas. Mas, que acontecem, muitas vezes, para que seja solucionado algum problemas em comum.

ASCOM: Existem diferenças reais entre a Ecossocioeconomia e a promoção de boas práticas nas comunidades?

CACS: Ainda que as boas práticas sejam muito bem vindas, a diferença é que elas não funcionam em rede e não tem um fôlego, como já pode ser observado nas experiências de Ecossocioeconomias.

A Ecossocioeconomia pode ser entendida como um conjunto de boas práticas que, entretanto, funcionam em rede e que não beneficiam só as pessoas que compõem a rede, mas o território.

A crítica que se faz à Economia Convencional é que, normalmente, quem é beneficiado são aqueles que praticam as experiências. A ideia da Ecossocioeconomia é de beneficiar também aqueles que não necessariamente participam das experiências.

ASCOM: Você poderia melhor explicar e exemplificiar, se possível, as três modalidades de agir que, segundo seus trabalhos, caracterizam a Ecossocioeconomia?

CACS: Esses três termos são também não muito amigáveis.

Primeiro Princípio: o agir interoganizacional consiste na formação de redes, acordos e arranjos.

Me valendo da resposta anterior, é um conjunto de boas práticas que constituem, essencialmente, uma rede. É um pouco do princípio do Alcoólatras Anônimos (AA): você não larga uma dependência sozinho, você larga quando se sente parte de um movimento maior.

Segundo Princípio: o agir extraorganizacional diz que as redes não podem se autobeneficiar apenas. Mas, tem que beneficiar também as pessoas que vivem no território. Então, não é pelo fato da pessoa não participar da rede, que ela não pode ser beneficiada. Essa é uma lógica importante.

Terceiro Princípio: a ação extrarracional é o respeito pelos saberes e tecnologias locais. A percepção de que as pessoas que vivenciam o problema podem, elas próprias, ter as soluções, mas, às vezes falta o recurso.

É um pouco a ideia de Mohammed Yunus, ganhador do Nobel da Paz, do trabalho com microcrédito. Ele defende a ideia de que as pessoas vulneráveis socioeconomicamente têm as soluções e não tem acesso aos recursos que possibilitam a resolução desses problemas.

ASCOM: No artigo “Turismo como fenômeno humano”, você afirma que a ecossocioeconomia sob a denominação do Turismo de Base Comunitária consiste em um divisor de águas. O que justifica essa afirmação?

CACS: Acredito que a Ecossocioeconomia seja um divisor de águas, porque nela a comunidade arregaça as mangas para construir a concepção de turismo que mais lhe favorece. O próprio nome diz: Turismo de Base Comunitária. Diferente do que normalmente acontece, já que o Turismo tradicional costuma ser pensado por empreendedores que têm pouca identificação com as comunidades.

ASCOM: Existe algum ponto de intercessão entre a Ecossocioeconomia e o investimento de grandes empresas privadas?

CACS: Pela minha formação, que é de administrador, tenho uma entrada no mundo empresarial. Então, eu conheço tanto o lado bom, quanto o ruim. Como também existe nas outras esferas de poder. O mundo comunitário não é só um mar de flores.

Eu, já de antemão, não reconheço as experiências empresariais como Ecossocioeconomia. Mas, eu reconheço que algumas são interessantes, como por exemplo a da linha de produtos da Natura que se chama Natura Ekos.

Normalmente, as fábricas das indústrias de cosméticos ficam localizadas no Sul e no Sudeste do Brasil. A Ekos montou a base em Belém, no Pará, onde a matéria prima que compõe a linha é extraída por associações de moradores que vivem na Floresta Amazônica. É uma iniciativa muito interessante, mesmo não sendo isenta de críticas.

Não chamo de Ecossocioeconomia na sua íntegra, porque a racionalidade empresarial é econômica. Mas, eu não nego a importância que essas experiências têm, e é isso que eu chamo de transitoriedade entre uma Economia Convencional e uma Ecossocioeconomia.

Faço esforço para não ter preconceito e logo achar que essas experiências tem algo por trás, porque não é finalidade da empresa o bem comum. Talvez, o bem comum dos sócios. Mas, há algumas iniciativas interessantes.

ASCOM: Quais as principais diferenças entre o Turismo Comunitário e o Turismo de Base Comunitária?

CACS: Em sua tese, a professora da UNEB Francisca di Paula, que é coordenadora do VIII ETBCES, apresenta essas diferenças. O Turismo Comunitário, ainda que seja um nome muito simpático e progressista, se apropria dos modos de vida da comunidade ofertando esses modos para o visitante.

Já o Turismo de Base Comunitária, enquanto manifestação da Ecossocioeconomia, é construído pela própria comunidade, e ela é quem determina o que deve ser apropriado ou não. Então, são dois nomes muito próximos, mas de concepções conceituais bem diferentes.

ASCOM: Em comunidades tão diversas e historicamente marginalizadas, como as do entorno da UNEB, que tem aproximadamente 500 mil moradores, é possível estimular a cooperação, o planejamento e o trabalho integrado?

CACS: A maior parte das experiências de Turismo de Base Comunitária é registrada em regiões costeiras, rurais. Os registros em regiões urbanas são poucos. Então, o que faz a experiência do Projeto TBC Cabula importante, uma referência, é o contexto urbano.

Não é um trabalho fácil, porque os muitos atores envolvidos têm visões de mundo diferentes. Mas, defendo que o que faz possível o diálogo é o bem comum para a comunidade. Não importa os meios, alguns mais democráticos outros menos, mas o fim é o bem comum. Isso me parece que é o que faz da experiência do Cabula ter essa vitalidade. Estamos no oitavo encontro!

ASCOM: Qual a importância da consolidação da Ecossocioeconomia e do Turismo de Base Comunitária como pautas de uma universidade como a UNEB?

CACS: Essas experiências que são denominadas Ecossocioeconomias muitas vezes não surgem de um conceito teórico e inovador. Elas surgem porque as comunidades que vivem o problema, desassistidas pelo Estado, fazem com que essas experiências possuam elementos que não necessariamente as teorias conhecidas e trabalhadas nas universidades possam dar conta.

Então, a dificuldade maior é que essas experiências inalam elementos novos e daí a importância de você ter um projeto de pesquisa sistêmico e que respeita a emergência dessa sabedoria local e dos conhecimentos tradicionais, de maneira que você possa incorporar no repositório de teorias. Me parece muito apropriado realizarmos dissertações de mestrado e teses de doutorado, porque são pesquisas de fôlego.

Pelo que soube, boa parte dos alunos que aqui estudam moram na região. Aqui temos uma solução muito simples de envolver a universidade na comunidade em que ela está instalada.

Nas universidades existem muitas iniciativas diferentes, que muitas vezes estão pulverizadas. Então, é importante discutir esses temas, porque o que falta é uma maior integração. A ideia é que o espaço onde a universidade está funcione como um cimento, que associa e agrega os esforços pulverizados.

Assim, eu enalteço o trabalho do TBC Cabula, porque parte também de uma visão a partir de processos de ensino-aprendizagem. Então, não é um projeto de intervenção de uma universidade que tem muito conhecimento e tem muito a ensinar a comunidades que pouco sabem.

ASCOM: Dentro da ideia do deslocamento transitório, como incentivar o envolvimento dos turistas com os projetos comunitários de forma não apenas pecuniária?

CACS: Acredito na abordagem da educação. O enfoque da educação é chave, porque o que está associado hoje à ideia de tempo produtivo, é como ele é remunerado.

Como se o tempo produtivo não remunerado não fosse digno. Então, as pessoas muitas vezes não investem o seu tempo em produção coletiva, porque não é remunerada. Um exemplo: as pessoas não participam de reuniões de associação porque, em uma visão míope, é como se fosse uma perda de tempo.

Na verdade, não tem uma solução fácil. Precisamos reforçar um processo de cidadania ativa, em que a ideia de você ser um liderado é tão boa como a de ser líder.

Então, é um processo de formação de longo prazo, em que a universidade tem um papel importante, até para repensar um pouco os seus currículos. Porque, por vezes, uma boa aula pode se dar fora da sala, em ações e projetos como o TBC Cabula.

ASCOM: Proponente de novas formas de pensar o Turismo, através de um enfoque complexo-sistêmico, transdisciplinar e que valorizem os entendimentos das Ciências Ambientais, como você avalia a oferta dos cursos de Turismo e Administração?

CACS: Hoje, os cursos de Turismo no Brasil vivem uma crise. Muitos cursos fechando, pelo menos nas regiões Sudeste e Sul. Mas, o que eu percebo é que a Indústria Convencional do Turismo acaba gerando subempregos. Muitas profissões meritórias, mas muito mal remuneradas. Então, os jovens não se sentem tão atraídos.

O que me parece é que os cursos de Turismo poderiam repensar um pouco a grade curricular e favorecer um curso muito mais voltado para a construção de políticas públicas e, inclusive, para a concepção do Turismo de Base Comunitária. Sobretudo, por ser um curso transversal e que promove uma mescla da Economia, da Sociologia e da Ciência Ambiental. Seria oportuno repensar sob essa perspectiva.

Inclusive, algo muito polêmico para mim que sou da área de Administração, é que seria importante repensar a ideia de empreendedorismo. Talvez, repensar no sentido de um socioempreendedorismo.

Pensar não só no empreendedorismo individual, mas em um que seja coletivo e que favoreça o território. Que favoreça as pequenas escalas. Porque um grande problema de agências e estatais é que elas enxergam o bom empreendedor apenas naquele que pensa em escala maior de produção. Como se a pequena escala não fosse meritória.

Para informações sobre experiências de Ecossocioeconomias já implementadas no Brasil, sugerimos o artigo “Turismo como Fenômeno Humano: princípios para pensar a ecossocioeconomia do turismo e sua prática sob a denominação turismo comunitário”, do autor.

Ascom Entrevista: Jaci Menezes (Grupo de Pesquisa Memória da Educação na Bahia)

Wânia Dias
Núcleo de Jornalismo
Assessoria de Comunicação

A história da UNEB se entrelaça com a da educação superior baiana. Todo o processo que culminou na criação da universidade foi resultado de movimentos e lutas pela implantação do ensino superior no estado, vinculados à ideia de que o desenvolvimento econômico e social nordestino estava fortemente articulado ao desenvolvimento educacional.

Desde a criação da Faculdade de Agricultura do Médio São Francisco (Famesf), em 1960, até a decisão de articular todas as unidades de ensino superior criadas nos diversos territórios de identidade da Bahia, se passaram mais de duas décadas. Nesse período, a educação baiana foi se transformando, se expandindo e se consolidando com o trabalho e suor de muitos. Esforços que resultaram na institucionalização da UNEB, em 1983.

Neste dia 1º de junho de 2016, a universidade completa 56 anos de história e 33 de institucionalização. Para comemorar a data, a Assessoria de Comunicação (Ascom) da instituição convidou a professora Jaci Menezes para contar essa história, que se confunde, inclusive, com sua própria trajetória de vida, já que a educadora dedicou décadas de trabalho e luta à educação baiana, sendo 31 anos em atividade na UNEB.

Coordenadora do Grupo de Pesquisa Memória da Educação na Bahia e coautora de um detalhado estudo sobre a universidade e a educação baiana, Jaci nos concedeu extensa entrevista em que contextualiza historicamente o processo de criação da UNEB, relacionando-o com o desenvolvimento socioeconômico e cultural do estado com referências que remontam o período colonial.

  • Veja entrevista na íntegra:

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO (ASCOM) – Qual era o contexto econômico, social e político que embasou os movimentos de luta pela educação superior na Bahia?

JACI MENEZES – Vamos por partes. O processo que culminou na decadência da economia baiana, predominantemente vinculada à agroindústria do açúcar, se inicia lá atrás, a partir da metade do século XIX,  quando as províncias da Região Nordeste, falidas, começam a vender os seus escravos às províncias do Sul, em especial São Paulo e Minas Gerais, com o início da lavoura do café. Para essas regiões também se dirige, mais fortemente, o fluxo imigratório –  a imigração era vista pelos proprietários paulistas como solução e caminho com a abolição da escravatura, sendo inclusive subsidiada pela província de São Paulo e depois pelo governo imperial.

Nesse contexto, com o objetivo de capacitar esses imigrantes, o governo imperial cria escolas agrícolas: uma em Campinas (SP), na região do café, e outra na Bahia, em São Bento das Lages, na região açucareira, próxima a Santo Amaro. Essas escolas representam um marco importante no que se refere ao desenvolvimento da educação no país e, consequentemente, na Bahia.

Dando um salto na história, em 1925, o governo Góes Calmon  articula um plano de desenvolvimento para a Bahia. O então secretário de Educação, Anísio Teixeira, preocupado em ampliar a oferta de Educação Básica, busca a expansão da educação primária e do sistema de formação de professores, fortalecendo a Escola Normal de Salvador, reinstalando a Escola Normal de Caetité e criando a de Feira de Santana. Das três, apenas a de Salvador não esteve, nem está hoje, vinculada a uma universidade.

Nesse ínterim, a Escola Agrícola de São Bento das Lages foi estadualizada e o governo Calmon propõe a sua transferência para Salvador, o que acontece já na década de 1930. A escola inicialmente funcionou em Monte Serrat e depois na Ondina, onde outras escolas superiores já existiam, a exemplo da Faculdade de Medicina Veterinária, hoje Universidade Federal da Bahia (Ufba).

ASCOM – Os primeiros movimentos da Bahia voltados para a educação superior culminaram na criação da Universidade Federal da Bahia. Em que momento esses movimentos identificaram a necessidade de interiorizar o ensino superior?

JACI – A criação da Ufba é resultado de um forte movimento da Bahia como um todo. Reúne esforços de todos os lados e contou com apoio da bancada de deputados constituintes. Contudo, o Decreto-Lei que a criou limitava a sua ação a Salvador. Após sua criação, começam a surgir pressões pela organização e expansão do sistema público de ensino superior para o interior do estado da Bahia.

Historicamente, existia na Bahia uma tensão entre interior e capital pelo domínio do poder político do estado, consubstanciado nas ações do governo, inclusive na área da educação. Em meio a esse turbilhão, surge, em 1960, a Faculdade de Agricultura do Médio São Francisco (Famesf), em Juazeiro, como resultado de movimento de estudantes concluintes do ensino médio e sua pressão sobre a Assembleia Legislativa do Estado. É a primeira unidade estadual a se formar. Diria que a sua criação está vinculada a todo o movimento de desenvolvimento do Vale do São Francisco, que propõe a regularização da navegação no Rio São Francisco, a criação da Chesf e da barragem do São Francisco, em Paulo Afonso, e a implantação da agricultura irrigada.

ASCOM– Após a Famesf, outras escolas de ensino superior foram implantadas de acordo com as necessidades econômicas de cada região do estado. Em 1980, foi criada a Superintendência de Ensino superior do Estado da Bahia (Seseb) com o objetivo de agregar e articular essas unidades de ensino. Em que momento e por qual motivo avaliou-se necessário transformar a antiga superintendência em uma universidade multicampi?

JACI – O período de Navarro de Britto como Secretário da Educação, no governo de Luís Vianna, inicia ações para a expansão do ensino superior, com a  criação, em 1969, da Universidade de Feira de Santana. Em 1971, foi promovida uma avaliação das Escolas Superiores então existentes. Diagnostica-se, então, a necessidade da unificação das formas de recrutamento e remuneração dos professores. Nessa época, a Coordenação das Escolas Superiores era feita pelo Departamento de Ensino Superior e Cultura, função que depois passou a ser da Seseb.

A Superintendência articulava e coordenava a Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco (Famesf), em Juazeiro, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de Juazeiro (FFCLJ) e Caetité (FFCLC), as Faculdades de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA), Jacobina (FFPJ) e Santo Antônio de Jesus (FFPSAJ) e o Centro de Educação Técnica da Bahia (Ceteba).

Todas as unidades de educação superior eram autarquias e, por isso, tinham o mesmo grau de autonomia que a Seseb, que era vinculada à Secretaria da Educação e Cultura. Ao ser criada a universidade, foi preciso encontrar uma forma para garantir o grau de autonomia universitária dessas instituições. A multicampia ajudou nisso, na sua institucionalização enquanto universidade. São campi diversos, múltiplos, de uma mesma universidade, todos com o mesmo status universitário.

ASCOM – Por que nem todas as unidades de ensino integraram a estrutura da UNEB, como o Núcleo de Educação Superior de Ilhéus, por exemplo?

JACI – Durante o processo de institucionalização da UNEB foi realizado um estudo que definiu as unidades que constituiriam a universidade. Esse estudo contemplou diversos elementos relacionados à economia e à expectativa da comunidade local, por exemplo. Cada região, cada cidade tinha as suas próprias necessidades socioeconômicas. Vou usar o seu exemplo: o núcleo de Ilhéus. A Região do Cacau sempre teve uma luta forte pela criação de sua própria universidade. No governo Luís Viana chegou a ser criada  em Ilhéus/Itabuna, uma universidade, a Universidade do Sul da Bahia, que não foi nunca instalada. Dessa forma, unidades privadas de educação superior se instalam em Ilhéus e em Itabuna. Tratava-se da Federação de Escolas Superiores (Fespi) que, em 1997, passaria a integrar a Universidade Estadual de Santa Cruz, no governo de Waldir Pires.

ASCOM – A UNEB não foi uma universidade criada na capital, que depois se expandiu para o interior. Ela já nasceu no interior. De que modo essa experiência refletiu no formato da instituição, na sua metodologia de ensino e na valorização dos territórios de identidade?

JACI – A Universidade do Estado da Bahia surge do desejo e da luta das diversas comunidades da Bahia, e a sua expansão obedece a essa lógica. É uma instituição criada com o objetivo de democratizar o acesso ao ensino superior. Uma universidade que nasce do povo, para o povo. A sua concepção foi balizada em  valores como a inclusão e a participação que, inclusive, pautam as ações da universidade até hoje. A multicampia lhe permite ainda um enraizamento na sua comunidade de referência. Os diversos campi da UNEB têm uma grande importância nas cidades onde estão instalados, seus professores e diretores têm apoio e penetração nos municípios e regiões de identidade do estado.  As diversas unidades são requisitadas para ações conjuntas com outros órgãos do governo do Estado e de órgãos federais.

ASCOM – Como a institucionalização da UNEB mudou a face da educação superior baiana? O que mudou do ponto de vista socioeconômico, político e cultural?

JACI – A institucionalização – entendida como a criação da UNEB –estende o estatuto universitário ao conjunto de unidades que já existiam; o que  ajuda no amadurecimento das atividades já desenvolvidas, aprofundando, integrando e expandindo ações de ensino, pesquisa e extensão por todo o estado.

ASCOM– A criação da UNEB foi fruto de um trabalho conjunto, com esforço e suor de muitos. Quem foram os principais responsáveis pela institucionalização da Universidade do Estado da Bahia?

JACI – A UNEB é fruto da ação de todos que nela estudam e trabalham. Passa, às vezes, por muitas dificuldades. Creio que o trabalho a ser feito é de consolidação e de fortalecimento do respeito de que ela goza e de sua relação com as comunidades científicas nacional e internacional. A ideia é que o crescimento da universidade se faz no dia a dia e no trabalho de cada um. Naturalmente, assim como em cada área de conhecimento e de atuação, ela se beneficia sempre dos seus líderes e do seu enraizamento nas comunidades estadual e local.

ASCOM – Desde a sua institucionalização, a UNEB cresceu muito. Foram criados novos campi, novos cursos de graduação e de pós-graduação lato e stricto sensu. Além de ser referência na formação de professores, a UNEB desenvolve pesquisas em diversas áreas do conhecimento como tecnologia (robótica, games educativos), diversificando a sua área de atuação. Esse crescimento, em sua opinião, é qualitativo?

JACI – Sem dúvida. Principalmente no que se refere à criação e instalação dos cursos de pós-graduação, uma exigência da legislação federal, que criou novas demandas e, a partir delas, muitas ações foram e estão sendo realizadas para garantir o fomento a pesquisa e o apoio ao professor pesquisador com a oferta de cursos de pós-graduação para complementar a formação docente e para garantia da divulgação qualificada de seus trabalhos.

É preciso também falar do papel que a UNEB desempenha hoje no sistema de educação superior do Estado da Bahia. A análise dos dados de matrícula tem nos mostrado uma universidade em plena expansão e consolidação, que mantêm e renova sempre o seu compromisso com propostas e demandas de comunidades específicas, como a de indígenas, assentados, quilombolas, sem perder a visão de conjunto. A UNEB está presente na maioria dos territórios de identidade da Bahia, seus alunos são, majoritariamente, oriundos da rede pública de ensino e a sua política de ações afirmativas tem garantido a presença de um número de alunos negros e afrodescendentes maior do que as cotas de 40% estabelecidas por seus programas.

A universidade reforça, em cada ação e projeto, o seu caráter inclusivo e popular, democratizando o acesso à educação superior. Hoje, a demanda é pelo fortalecimento dessas ações, garantindo a sua efetividade.

ASCOM – Tendo em vista o seu processo de criação e o seu expressivo e contínuo crescimento, como você vê a UNEB daqui a mais 33 anos?

JACI – A UNEB já é uma universidade grande. Certamente, o seu caminhar deve ser no sentido do aprofundamento da sua presença no estado e nas regiões, caminhando passo a passo com o crescimento da Bahia e do seu povo.  Já tenho 31 anos de UNEB e tudo o que vi e vivi aqui me dá a certeza de que temos potencial para ir muito mais longe. Desejo à UNEB e a todos que por ela lutam e lutaram vida longa e fecunda.

Ascom entrevista: Eliana Yunes (Cátedra UNESCO de Leitura do Brasil)

Wânia Dias
Núcleo de Jornalismo
Assessoria de Comunicação

Coordenadora da Cátedra Unesco de Leitura do Brasil e idealizadora do Programa Nacional de Leitura (Proler), a professora e pesquisadora Eliana Yunes (PUC-RJ) trabalha com um conceito específico de leitura baseado na interação do indivíduo consigo mesmo e com o outro.

Para ela, ler é mais que decifrar códigos, é compreender o sentido das coisas e do mundo, e suas significações. “A contemplação induz à teorização”, diz.

A pesquisadora acredita que a alfabetização contemporânea é mecanizada e defende que a leitura precisa ser inserida em um novo contexto formativo, mais amplo e contínuo. A ausência da prática da leitura, segundo ela, é um grave entrave para o crescimento do país: “O Brasil que não lê nos custa muito caro.”

Eliana Yunes é uma das convidadas do V Encontro de Leitura e Literatura da UNEB, que acontece entre os dias 9 e 12 de novembro, no Campus I da Universidade, em Salvador. A professora vai ministrar a conferência de abertura do evento, no próximo dia 9, às 16h30.

Em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (ASCOM) da UNEB, Eliana avaliou o atual panorama da leitura no Brasil e falou sobre formação do leitor, sobre novas tecnologias aplicadas à educação, sobre a importância da figura do mediador no processo de letramento e sobre os impactos da alfabetização instrumental no desenvolvimento social, econômico e cultural do país.

Veja entrevista na íntegra:

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Quando você fala sobre o ato de ler, você fala de paixão, de emoção, de troca e interação do indivíduo consigo mesmo e com o outro. Quando e em que contexto surgiu seu conceito de leitura?

Eliana Yunes (EY): Ler é antes criar um sentido para as coisas e para o mundo. O texto do mundo tem que ser composto no ato de ler e de configurar uma cosmovisão. Ele se apresenta sob a forma de linguagem, uma entre muitas possíveis: a da língua materna oral e escrita, nas narrativas imagéticas e sonoras; tudo o que o homem cria é uma representação de suas ideias e sentimentos na relação com a natureza e a cultura.

Foi vivenciando a prática da leitura com crianças e com adultos que se foi desenhando o conceito; a contemplação induz à teorização. Assim a partir do trabalho com o Proler em todo o Brasil, procurei confirmar as hipóteses traçadas e disto veio se fundamentando uma tese para a formação do leitor.

ASCOM: Na cátedra, você desenvolve trabalhos que propõem reverter o lugar da leitura, inserindo-a em um contexto formativo mais amplo, superando a alfabetização instrumental, e define o mediador como um dos principais agentes desse processo. Quem são (ou podem ser) esses mediadores e como formá-los para que se tornem agentes transformadores nas escolas brasileiras?

EY: Mediadores são todos os que se dispõem a serem pontes, entre a experiência humana e sua tradução às linguagens, isto é suas textualidades: pais, professores, bibliotecárias, colegas, artistas, criadores, até mesmo situações e vivências podem ser definidas com mediadoras . O que ajuda a fazer nascer leitores pode ser, em diferentes circunstâncias, um mediador apenas apaixonado que sabe seduzir, da mesma forma que foi seduzido pela leitura.

ASCOM: Como você avalia a didática escolar e os recursos pedagógicos utilizados nos processos de alfabetização contemporâneos?

EY: A questão da alfabetização avançou muito com observação direta do processo com crianças e adultos e a partir de teorizações de estudiosos como Piaget, Vygotsky, Paulo Freire, Emílio Ferreiro. O problema está na pós-alfabetização quando o abandono da experiência de ler em favor de uma gramática do texto desarticula a participação do leitor.

ASCOM: Qual a sua opinião sobre as novas tecnologias aplicadas à educação? Como elas atuam no processo de formação do leitor?

EY: As tecnologias eletrônicas como as anteriores – do rolo ao códice, do códice ao livro e agora do livro à tela – podem ser de auxilio efetivo à prática de ler e escrever e, como tudo o mais, depende do uso que se faz delas, de como ela se desenvolve e se articula com outros meios. É de um complexo de fios – uma rede ampla de diferentes suportes e práticas – que pode favorecer a leitura e a escrita.

ASCOM: O processo de alfabetização da criança e do adulto apresentam metodologias distintas. Quais os principais desafios da formação de leitores nessas duas fases da vida?

EY: Os universos de cada um precisam ser atualizados nesta formação. E as experiências e visões que são certamente bastante diferentes. Por isso as práticas serão diversas; e múltiplos os recursos metodológicos e didáticos.

ASCOM: Quanto custa o Brasil que não lê? Qual o impacto da alfabetização mecânica no desenvolvimento do país?

EY: O Brasil que não lê nos custa muito caro. Desde problemas na saúde (práticas equivocadas para tratamentos), no trabalho (acidentes e incongruências), na vida urbana e social (o lixo, o transporte, a corrupção). O Brasil precisa avaliar os fatos, os acontecimentos e conectá-los com a ausência de práticas de leitura: vazamentos de petróleo nos portos, rompimento do césio em Goiânia, etc. O Brasil que lesse poderia comprometer o leitor com a cidadania, com maior assiduidade.

ASCOM: De que forma eventos como o Elluneb estimulam a leitura e auxiliam na formação de leitores?

EY: Sem dúvida, atividades densas, reflexão, pesquisa, formação de jovens leitores e de mediadores é o caminho para a criação de redes de experiências que trarão inclusive uma formação continuada. No caso presente, é importante não conhecer apenas teoria e práticas, mas, sobretudo ler literatura, ler ficção e não ficção para se envolver com o sentido que se atribui – ou não – ao mundo da letra e à letra do mundo.