De acordo com recomendações da Organização Mundial do Turismo (OMT), o Turismo pode ser definido como “atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e permanência em lugares distintos dos que vivem, por um período de tempo inferior a um ano consecutivo, com fins de lazer, negócios e outros”.
Mas, e se extrapolarmos esse conceito e passarmos a pensar não apenas no turista, mas também nas comunidades que os recepcionam? E se a própria comunidade pudesse empreender esforços e deliberar coletivamente sobre os seus projetos e atrativos? E se, solidariamente, todos que compõem essa rede, e mesmo os que não compõem, pudessem ser beneficiados por suas ações?
Todos esses questionamentos estão sendo feitos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros que se debruçam sobre as Ciências Ambientais e sua relação com o Turismo, e que trabalham com conceitos como o de Ecossocioeconomia.
As respostas ainda estão em construção e nos levam a temas como o Turismo de Base Comunitária e a Economia Solidária, como manifestações dessa “outra forma de pensar a Economia”.
Um desses pesquisadores é Carlos Alberto Cioce Sampaio. Administrador, mestre e doutor nas temáticas planejamento e gestão organizacional para o desenvolvimento sustentável e pós-doutor em Ecossocioeconomia, ele coordena o Núcleo de Ecossocioeconomia (NEcos), da Universidade Federal do Paraná (Ufpr), e é docente da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb).
O professor foi um dos convidados do VIII Encontro de Turismo de Base Comunitária e Economia Solidária (ETBCES) da UNEB, realizado nos dias 9, 10 e 11 de julho, no Campus I da Universidade, em Salvador. Ele ministrou a conferência de abertura do evento, intitulada “Ecossocioeconomias: um conceito em construção”.
Em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação (ASCOM) da UNEB, Carlos Sampaio apresentou detalhes de ideias relacionadas ao conceito, sob a denominação de Turismo de Base Comunitária, diferenças entre a proposição e como atua a Indústria Convencional do Turismo, e ainda avaliou a experiência do projeto da universidade Turismo de Base Comunitária no Cabula e Entorno (TBC Cabula), o qual considerou de “vanguarda”. Veja abaixo:
Assessoria de Comunicação (ASCOM): O conceito de Ecossocioeconomia é tão difícil de ser compreendido como é para ser pronunciado?
Carlos Alberto Cioce Sampaio (CACS): A Ecossocioeconomia é um conceito não muito amigável. Justamente por isso, sempre uso como sinônimo: uma gestão que privilegia uma outra economia. As Ecossocioeconomias são experiências que acontecem no cotidiano.
Normalmente, elas não são experiências de construções teóricas. Mas, que acontecem, muitas vezes, para que seja solucionado algum problemas em comum.
ASCOM: Existem diferenças reais entre a Ecossocioeconomia e a promoção de boas práticas nas comunidades?
CACS: Ainda que as boas práticas sejam muito bem vindas, a diferença é que elas não funcionam em rede e não tem um fôlego, como já pode ser observado nas experiências de Ecossocioeconomias.
A Ecossocioeconomia pode ser entendida como um conjunto de boas práticas que, entretanto, funcionam em rede e que não beneficiam só as pessoas que compõem a rede, mas o território.
A crítica que se faz à Economia Convencional é que, normalmente, quem é beneficiado são aqueles que praticam as experiências. A ideia da Ecossocioeconomia é de beneficiar também aqueles que não necessariamente participam das experiências.
ASCOM: Você poderia melhor explicar e exemplificiar, se possível, as três modalidades de agir que, segundo seus trabalhos, caracterizam a Ecossocioeconomia?
CACS: Esses três termos são também não muito amigáveis.
Primeiro Princípio: o agir interoganizacional consiste na formação de redes, acordos e arranjos.
Me valendo da resposta anterior, é um conjunto de boas práticas que constituem, essencialmente, uma rede. É um pouco do princípio do Alcoólatras Anônimos (AA): você não larga uma dependência sozinho, você larga quando se sente parte de um movimento maior.
Segundo Princípio: o agir extraorganizacional diz que as redes não podem se autobeneficiar apenas. Mas, tem que beneficiar também as pessoas que vivem no território. Então, não é pelo fato da pessoa não participar da rede, que ela não pode ser beneficiada. Essa é uma lógica importante.
Terceiro Princípio: a ação extrarracional é o respeito pelos saberes e tecnologias locais. A percepção de que as pessoas que vivenciam o problema podem, elas próprias, ter as soluções, mas, às vezes falta o recurso.
É um pouco a ideia de Mohammed Yunus, ganhador do Nobel da Paz, do trabalho com microcrédito. Ele defende a ideia de que as pessoas vulneráveis socioeconomicamente têm as soluções e não tem acesso aos recursos que possibilitam a resolução desses problemas.
ASCOM: No artigo “Turismo como fenômeno humano”, você afirma que a ecossocioeconomia sob a denominação do Turismo de Base Comunitária consiste em um divisor de águas. O que justifica essa afirmação?
CACS: Acredito que a Ecossocioeconomia seja um divisor de águas, porque nela a comunidade arregaça as mangas para construir a concepção de turismo que mais lhe favorece. O próprio nome diz: Turismo de Base Comunitária. Diferente do que normalmente acontece, já que o Turismo tradicional costuma ser pensado por empreendedores que têm pouca identificação com as comunidades.
ASCOM: Existe algum ponto de intercessão entre a Ecossocioeconomia e o investimento de grandes empresas privadas?
CACS: Pela minha formação, que é de administrador, tenho uma entrada no mundo empresarial. Então, eu conheço tanto o lado bom, quanto o ruim. Como também existe nas outras esferas de poder. O mundo comunitário não é só um mar de flores.
Eu, já de antemão, não reconheço as experiências empresariais como Ecossocioeconomia. Mas, eu reconheço que algumas são interessantes, como por exemplo a da linha de produtos da Natura que se chama Natura Ekos.
Normalmente, as fábricas das indústrias de cosméticos ficam localizadas no Sul e no Sudeste do Brasil. A Ekos montou a base em Belém, no Pará, onde a matéria prima que compõe a linha é extraída por associações de moradores que vivem na Floresta Amazônica. É uma iniciativa muito interessante, mesmo não sendo isenta de críticas.
Não chamo de Ecossocioeconomia na sua íntegra, porque a racionalidade empresarial é econômica. Mas, eu não nego a importância que essas experiências têm, e é isso que eu chamo de transitoriedade entre uma Economia Convencional e uma Ecossocioeconomia.
Faço esforço para não ter preconceito e logo achar que essas experiências tem algo por trás, porque não é finalidade da empresa o bem comum. Talvez, o bem comum dos sócios. Mas, há algumas iniciativas interessantes.
ASCOM: Quais as principais diferenças entre o Turismo Comunitário e o Turismo de Base Comunitária?
CACS: Em sua tese, a professora da UNEB Francisca di Paula, que é coordenadora do VIII ETBCES, apresenta essas diferenças. O Turismo Comunitário, ainda que seja um nome muito simpático e progressista, se apropria dos modos de vida da comunidade ofertando esses modos para o visitante.
Já o Turismo de Base Comunitária, enquanto manifestação da Ecossocioeconomia, é construído pela própria comunidade, e ela é quem determina o que deve ser apropriado ou não. Então, são dois nomes muito próximos, mas de concepções conceituais bem diferentes.
ASCOM: Em comunidades tão diversas e historicamente marginalizadas, como as do entorno da UNEB, que tem aproximadamente 500 mil moradores, é possível estimular a cooperação, o planejamento e o trabalho integrado?
CACS: A maior parte das experiências de Turismo de Base Comunitária é registrada em regiões costeiras, rurais. Os registros em regiões urbanas são poucos. Então, o que faz a experiência do Projeto TBC Cabula importante, uma referência, é o contexto urbano.
Não é um trabalho fácil, porque os muitos atores envolvidos têm visões de mundo diferentes. Mas, defendo que o que faz possível o diálogo é o bem comum para a comunidade. Não importa os meios, alguns mais democráticos outros menos, mas o fim é o bem comum. Isso me parece que é o que faz da experiência do Cabula ter essa vitalidade. Estamos no oitavo encontro!
ASCOM: Qual a importância da consolidação da Ecossocioeconomia e do Turismo de Base Comunitária como pautas de uma universidade como a UNEB?
CACS: Essas experiências que são denominadas Ecossocioeconomias muitas vezes não surgem de um conceito teórico e inovador. Elas surgem porque as comunidades que vivem o problema, desassistidas pelo Estado, fazem com que essas experiências possuam elementos que não necessariamente as teorias conhecidas e trabalhadas nas universidades possam dar conta.
Então, a dificuldade maior é que essas experiências inalam elementos novos e daí a importância de você ter um projeto de pesquisa sistêmico e que respeita a emergência dessa sabedoria local e dos conhecimentos tradicionais, de maneira que você possa incorporar no repositório de teorias. Me parece muito apropriado realizarmos dissertações de mestrado e teses de doutorado, porque são pesquisas de fôlego.
Pelo que soube, boa parte dos alunos que aqui estudam moram na região. Aqui temos uma solução muito simples de envolver a universidade na comunidade em que ela está instalada.
Nas universidades existem muitas iniciativas diferentes, que muitas vezes estão pulverizadas. Então, é importante discutir esses temas, porque o que falta é uma maior integração. A ideia é que o espaço onde a universidade está funcione como um cimento, que associa e agrega os esforços pulverizados.
Assim, eu enalteço o trabalho do TBC Cabula, porque parte também de uma visão a partir de processos de ensino-aprendizagem. Então, não é um projeto de intervenção de uma universidade que tem muito conhecimento e tem muito a ensinar a comunidades que pouco sabem.
ASCOM: Dentro da ideia do deslocamento transitório, como incentivar o envolvimento dos turistas com os projetos comunitários de forma não apenas pecuniária?
CACS: Acredito na abordagem da educação. O enfoque da educação é chave, porque o que está associado hoje à ideia de tempo produtivo, é como ele é remunerado.
Como se o tempo produtivo não remunerado não fosse digno. Então, as pessoas muitas vezes não investem o seu tempo em produção coletiva, porque não é remunerada. Um exemplo: as pessoas não participam de reuniões de associação porque, em uma visão míope, é como se fosse uma perda de tempo.
Na verdade, não tem uma solução fácil. Precisamos reforçar um processo de cidadania ativa, em que a ideia de você ser um liderado é tão boa como a de ser líder.
Então, é um processo de formação de longo prazo, em que a universidade tem um papel importante, até para repensar um pouco os seus currículos. Porque, por vezes, uma boa aula pode se dar fora da sala, em ações e projetos como o TBC Cabula.
ASCOM: Proponente de novas formas de pensar o Turismo, através de um enfoque complexo-sistêmico, transdisciplinar e que valorizem os entendimentos das Ciências Ambientais, como você avalia a oferta dos cursos de Turismo e Administração?
CACS: Hoje, os cursos de Turismo no Brasil vivem uma crise. Muitos cursos fechando, pelo menos nas regiões Sudeste e Sul. Mas, o que eu percebo é que a Indústria Convencional do Turismo acaba gerando subempregos. Muitas profissões meritórias, mas muito mal remuneradas. Então, os jovens não se sentem tão atraídos.
O que me parece é que os cursos de Turismo poderiam repensar um pouco a grade curricular e favorecer um curso muito mais voltado para a construção de políticas públicas e, inclusive, para a concepção do Turismo de Base Comunitária. Sobretudo, por ser um curso transversal e que promove uma mescla da Economia, da Sociologia e da Ciência Ambiental. Seria oportuno repensar sob essa perspectiva.
Inclusive, algo muito polêmico para mim que sou da área de Administração, é que seria importante repensar a ideia de empreendedorismo. Talvez, repensar no sentido de um socioempreendedorismo.
Pensar não só no empreendedorismo individual, mas em um que seja coletivo e que favoreça o território. Que favoreça as pequenas escalas. Porque um grande problema de agências e estatais é que elas enxergam o bom empreendedor apenas naquele que pensa em escala maior de produção. Como se a pequena escala não fosse meritória.
Para informações sobre experiências de Ecossocioeconomias já implementadas no Brasil, sugerimos o artigo “Turismo como Fenômeno Humano: princípios para pensar a ecossocioeconomia do turismo e sua prática sob a denominação turismo comunitário”, do autor.