Em 2020, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) celebra os 18 anos da aprovação do seu Sistema de Cotas. Para além de estabelecer um marco para essa história de lutas e garantia de direitos, a instituição cria novas oportunidades para reverenciar muitas outras histórias, sobretudo, da ancestralidade.
Marco fundamental para o avanço da gestão e do acompanhamento das políticas de reparação histórica na instituição, a implantação da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas (Proaf) da UNEB foi autorizada, em 2014, pelo Conselho Universitário (Consu), instância máxima deliberativa (Resolução nº 1020/2014).
Já no mesmo ano, a primeira gestão foi assumida pela professora Marluce Macêdo. Do momento da implantação em diante, sucederam-se debates institucionais sobre os caminhos para as ações afirmativas na universidade, o ingresso e a permanência qualificada e as formas possíveis de combate ao segregacionismo intencional e historicamente construídos no país.
Em 2016, já sob a gestão do professor Wilson Mattos, foi promovida a I Conferência Universitária de Estudantes Cotistas da UNEB (CONFCOTAS), com o objetivo de produzir um processo democrático de discussão com vistas à elaboração de um Programa de Permanência para Estudantes Cotistas.
O Programa de Bolsas de Pesquisa e Extensão para Estudantes Cotistas – AFIRMATIVA foi lançado no mesmo ano, após aprovação do Conselho Universitário (Consu) da instituição (Resolução nº 1.214/2016).
A iniciativa, que permanece ativa, garante a inserção de discentes ingressantes pelo sistema de reserva de vagas/sobrevagas no desenvolvimento inicial, orientado e supervisionado de atividades de elaboração e execução de projetos de pesquisa, extensão e de difusão do conhecimento.
O programa tem por objetivo possibilitar a esses estudantes uma forma específica de associação e ambientação coletiva, que dê suporte material, intelectual e subjetivo ao desenvolvimento satisfatório de suas respectivas trajetórias acadêmicas, fortalecendo os seus processos formativos.
“Caminhamos muito nessa direção de fortalecimento das políticas de ações afirmativas na universidade, desde as gestões da professora Marluce e do professor Wilson. A pró-reitoria promove política, a partir de uma articulação acadêmica e social, porque tudo o que fazemos envolve os movimentos sociais, que dão corpo às nossas ações”, explica a atual pró-reitora, Amélia Maraux.
Fortalecimento das vivências estudantis
Como consequência das ações de consolidação das ações afirmativas na UNEB, o Programa AFIRMATIVA foi reformulado em 2019, na gestão da atual pró-reitora, Amélia Maraux.
Com a ampliação do número de bolsas, os discentes participantes passaram a receber em 12 parcelas. O conjunto de área temáticas prioritárias também foi ampliado, e a “Faixa B” foi criada (temáticas livres), visando prestigiar projetos e subprojetos cujas abordagens sejam do interesse de investigação acadêmica dos proponentes.
O fortalecimento da ação pôde ser notado pelo expressivo número de inscrições de projetos, o que garantiu o preenchimento de todas as 100 vagas oferecidas, fato inédito para o programa. A partir desse resultado, a Proaf já formalizou a solicitação para ampliação da oferta, que tramita nos conselhos superiores da universidade.
Ainda no último ano, a Proaf passou por reestruturação, aprovada pelo Conselho Universitário (Resolução Consu nº 1.397/2019). A nova organização e distribuição de competências entre os setores da pró-reitoria busca impulsionar e robustecer as ações afirmativas na instituição, através da construção de políticas, programas e projetos.
Outra ação de destaque foi a construção do livro/coletânea “Série Ações Afirmativas: Educação e Direitos Humanos”, que se destina à divulgação da produção acadêmica relacionada aos campos de gênero, sexualidades, feminismos, masculinidades, questões étnico-raciais, comunidades quilombolas, educação inclusiva, cultura cigana, africanidades, interculturalidade, Lei 11.645/06, direitos humanos, racismo, lgbtfobia, ações afirmativas, inclusão de pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades.
“Entendemos, com a proposta da Série, a urgência de publicizar os debates acadêmicos possibilitados pela experiência acumulada com as Ações Afirmativas na UNEB, através do diálogo com outras instituições do país, para formulação de políticas públicas de acesso e permanência de estudantes cotistas, assim como vivências no ensino, pesquisa e extensão, em níveis de graduação e pós-graduação”, ressalta a coordenadora do projeto, Iris Verena Oliveira.
Em seu volume I, publicado no último ano em parceria com a Editora da UNEB (EdUNEB), a Série teve como tema “Diferenças e Práticas Formativas”, destacando experiências de pesquisa, ensino e extensão em espaços formais e não-formais de educação, na educação básica e superior, comprometidas com práticas interculturais, pós-coloniais, interseccionais, decoloniais, atravessadas pelo eixo: educação e direitos humanos.
O segundo volume da série, a ser publicado no primeiro semestre de 2021, trará o tema “Acesso e permanência de estudantes cotistas no ensino superior”, com a pretensão de socializar artigos que tratem do ingresso de estudantes pelo sistema de cotas; ações voltadas para permanência estudantil; e discussões sobre o cotidiano de estudantes cotistas na graduação e pós-graduação.
Assim, a Proaf intenta criar um espaço para publicação de artigos sobre ações afirmativas no Brasil, demarcando o importante papel cumprido pela UNEB na história do sistema de cotas para o ensino superior no país.
Inclusão e maior acompanhamento
Para que sucessivos avanços fossem possíveis, em recapitulação, o ano de 2018 inaugurou um novo marco histórico para as políticas institucionais de ações afirmativas na UNEB.
Em profunda articulação com os movimentos populares e se mantendo firme pela inclusão das populações histórica e socialmente discriminadas, a Proaf apresentou uma proposta de ampliação para o Sistema de Cotas, que foi aprovada por unanimidade pelo Consu (Resolução Consu nº 1339/2018).
Já no Vestibular UNEB 2019, com provas realizadas ainda no ano anterior, puderam também concorrer aos 5% de sobrevagas, em todos os cursos ofertados pela universidade: quilombolas; ciganos; pessoas com deficiência, com transtorno do espectro autista e com altas habilidades; transexuais e travestis, contabilizadas as cotas separadamente para cada grupo.
“Venceram os movimentos sociais, venceu o movimento negro, venceu a democracia. Hoje pululam leis, decretos e normativas que legislam e legitimam a política de reparação das pessoas, povos, grupos e comunidades que foram e são diuturnamente violentadas pelos racismos, capacitismos e sexismos que imperam no país”, celebra a gerente de Promoção e Acompanhamento das Ações Afirmativas da Proaf, Dina Maria Rosário, coordenadora do projeto que culminou na proposta apresentada ao Conselho Universitário.
Frente às conquistas, às quais se soma a II Conferência dos Cotistas da UNEB, fortaleceram-se também as ações de acompanhamento do acesso ao sistema de cotas já empreendidas pela pró-reitoria.
No mesmo ano de 2018, como fruto do trabalho de um grupo composto por docentes pesquisadores, técnicos e analistas, estudantes, representantes das pró-reitorias acadêmicas e representantes de movimentos sociais houve a regulamentação das Comissões Central e Departamentais de Validação para Acesso ao Sistema de Cotas.
Por meio dessa ação, a matrícula de candidatos optantes pelo sistema de cotas passou a contar com duas etapas: a validação da autodeclaração e demais documentos comprobatórios e a própria efetivação da matrícula.
A validação é realizada por comissões que passaram a atuar junto às coordenações acadêmicas nos processos de matrícula de aprovados pelo Vestibular UNEB ou pelo Sistema de Seleção Unificado (SiSU), do Ministério da Educação (MEC).
“É a primeira vez, na história da universidade, que a gente tem comissões voltadas para o acompanhamento in loco dos ingressantes. Caminhamos nesse desafio que não é só da UNEB, porque nós dialogamos bastante com os movimentos sociais para construir esse caminho”, ressalta professora Amélia Maraux.
Além da criação das comissões, a Proaf iniciou um processo de formação para elas, através de curso mediado por tecnologias intitulado “Deslimites”. Assim como compôs um grupo de trabalho (GT) para acompanhamento do sistema de cotas.
Ainda no mesmo ano, a pró-reitoria realizou uma atualização do questionário socioeconômico-cultural, parte integrante da inscrição do Processo Seletivo Vestibular, como estratégia para qualificar e refinar as informações acerca do perfil dos candidatos inscritos, aprovados e matriculados na UNEB; subsidiar decisões institucionais e embasar pesquisas acadêmicas.
“Lutamos diariamente contra o racismo, o capacitismo, a LGBTfobia e a transfobia, então, temos ainda um caminho no sentido da consolidação das políticas de ações afirmativas. E isso perpassa, também, pela consciência institucional com relação à existência desses outros sujeitos dentro da universidade, esse é um caminho, uma luta, um processo”, registra Amélia.
Ainda de acordo com a pró-reitora, está em processo de conclusão a Política de Acessibilidade e Inclusão da UNEB. Construída com participação de pesquisadores da área, cuja escuta qualificada garantiu o rigor técnico-científico da proposta. A política concretiza o compromisso da instituição com a garantia dos direitos da pessoa com deficiência. A proposta deverá ser encaminhada ao Consu ainda neste ano.
Desafios, transformações e perspectivas
“Antes, nós tínhamos uma cota de 100% para pessoas não negras na universidade”, lembra a professora Ivete Sacramento, enquanto registra as violências institucionais da história do Brasil, o que considera “ações afirmativas contrárias”, a saber:
Lei que proibia escravizados e descendentes de escravizados de frequentar a escola pública (1837); Lei de Terras (1850); Lei do Ventre Livre (1871); Lei dos Sexagenários (1885); Lei Áurea (1888), logo sucedida pelo Decreto Nº 847 (1890), que estabelecia o Código Penal da época, criminalizando a prática da capoeira, por exemplo; e a Lei do Boi (1968).
“O sistema de cotas como ação afirmativa é um direito conquistado. É isso que tem que ser interiorizado pelos estudantes. É um direito dos nossos antepassados, que lutaram muito para que a gente os tivesse na contemporaneidade”, defende o professor Wilson Mattos.
Após 18 anos de experiência na UNEB, e a oportunidade de rememorar e reverenciar outras tantas histórias, foram fomentadas inovações nas formas de sociabilidade entre discentes de diferentes realidades socioeconômicas, culturais e étnico-raciais e contribuições para mudanças da cultura acadêmica da universidade.
“Entendemos que os programas de ações afirmativas precisam ser mantidos, sobretudo, porque buscam promover a equidade e a valorização da diversidade. E é importante garantir, enquanto princípio institucional, essas agendas, a participação e a difusão dessas discussões para a conscientização de todos da comunidade acadêmica e da sociedade baiana”, destaca o reitor da UNEB, José Bites de Carvalho.
De acordo com a recente “Pesquisa UNEB 2020: Nós por Nós”, realizada entre os últimos meses de agosto e setembro, com contribuições de todos os segmentos institucionais, 78,9% dos 14.512 estudantes respondentes se identificaram como negros, pardos ou indígenas.
As mudanças são também registradas nas atividades de ensino, pesquisa e extensão: “Vemos emergir eixos de conhecimentos que questionam esse lugar de uma epistemologia ocidental, branca, masculina, abrindo caminhos para a consolidação de outros referenciais teóricos e metodológicos”, ressalta a pró-reitora Amélia.
Para o professor Wilson, a presença dessas populações, que eram ausentes da vida universitária, física, verbal, cultural e simbolicamente, de maneira inequívoca acabam por provocar mudanças significativas nas agendas da universidade.
Outra importante transformação institucional sinalizada pela professora Dina Maria Rosário é a fundação, após a implantação do Sistema de Cotas, de centros, núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa e/ou extensão que desenvolvem estudos na temática das ações afirmativas na UNEB, a exemplo dos:
– Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA);
– Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação (OPARÁ);
– Centro de Estudos e Pesquisas Intercultural e da Temática Indígena (CEPITI);
– Centro de Referência em Desenvolvimento e Humanidades (CRDH);
– Centro de Estudos em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (CEGRES/Diadorim);
– Núcleo de Educação Especial (NEDE).
Como atesta a professora Amélia Maraux, a implementação dessas iniciativas, voltadas para as temáticas afeitas às ações afirmativas, contribui sobremaneira para os enfrentamentos e desafios impostos pelas diferentes formas de preconceitos e violências, que impactam a vida de estudantes, professores e técnicos-administrativos negros, quilombolas, deficientes, LGBTI+.
“Neste ano de 2020, com o impacto da pandemia e o aprofundamento das desigualdades, os desafios postos para a gestão universitária se colocam de maneira mais contundente. Devemos pensar, portanto, os caminhos possíveis para a permanência estudantil como um grande desafio, neste momento em que a universidade implementa a oferta de ensino remoto”, destaca a gestora.
Portanto, “nesta celebração dos 18 anos, a universidade se mantém comprometida com a institucionalização das ações afirmativas”, conclui a pró-reitora de Ações Afirmativas da UNEB, Amélia Maraux.