A pandemia da COVID-19 chama atenção para os aspectos sombrios do sistema carcerário do Brasil. Insalubridade, superlotação, dificuldade de acesso à saúde e a falta de transparência do poder público nas ações de controle da doença são alguns dos problemas que tornam um grande desafio salvaguardar vidas encarceradas.
Segundo dados do Painel de Medidas de Combate à COVID-19, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, até o dia 15 de junho, foram contabilizados 2.189 infectados e 49 vítimas da COVID-19 nas prisões do país.
Com objetivo de verificar e contrapor informações de órgãos públicos e da imprensa sobre a pandemia do novo Coronavírus no sistema penitenciário, foi criado o observatório “INFOVÍRUS – prisões e pandemias”. A iniciativa reúne pesquisadores de universidades do Distrito Federal, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia, especializados nas áreas de criminologia e estudos sobre desigualdade e discriminação. Entre eles está Riccardo Cappi, professor de Direito da UNEB e da Uefs, e membro da coordenação colegiada do INFOVÍRUS.
Confira, a seguir, entrevista concedida pelo docente Ricardo Cappi à Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB. Nesse bate-papo, o pesquisador e também coordenador do Grupo de Pesquisa em Criminologia (GPCrim UNEB-UEFS), aponta negligências nas medidas de proteção à saúde dos presos, frente ao cenário de pandemia, o que tem resultado no aumento do número de óbitos na população carcerária brasileira. Cappi denuncia ainda a manipulação de dados sobre as contaminações por COVID-19 com o objetivo de camuflar o real impacto do vírus nas unidades prisionais.
Essa entrevista é um convite à reflexão sobre os desafios para garantia dos Direitos Humanos no Brasil e sobre a manifesta política de morte que esteia o sistema carcerário do país.
Assessoria de Comunicação (ASCOM): Quais os impactos da pandemia da COVID-19 no sistema prisional do país?
Riccardo Cappi (RC): O sistema prisional, de uma maneira geral, é um aparelho de reclusão, confinamento e exclusão que, no caso brasileiro, como em muitos países, é caracterizado por condições precárias de vida. A chegada do novo Coronavírus às penitenciárias criou uma enorme ameaça para essas pessoas, que vivem em condições de superlotação, impossibilitando o isolamento social que, sabemos, é a principal medida para conter a propagação do vírus.
No momento, o que observamos é a grande dificuldade de acesso à informação e a existência de focos problemáticos no sistema prisional. Por exemplo, em determinadas prisões aparecem, de uma só vez, 100 pessoas suspeitas ou com confirmação da infecção. Esses casos estão acontecendo em vários estados e, a partir das informações que temos, o sistema diz adotar algumas medidas de distanciamento, mas sem eficácia, já que observamos um aumento significativo no número de óbitos nesses espaços.
ASCOM: Como medidas de prevenção da doença, algumas unidades prisionais suspenderam visitas aos detentos, implantaram o isolamento de internos com casos suspeitos, prováveis ou confirmados, e soltura dos que fazem parte do grupo de risco, além da triagem dos servidores que atuam nesses espaços. Essas medidas são eficazes para impedir que o vírus chegue até as unidades prisionais?
RC: Antes de saber se são eficazes, precisamos saber se são efetivas. Por exemplo, que tipo de isolamento é possível no sistema penitenciário, uma vez que existem, apesar da suspensão das visitas dos familiares, entradas e saídas de funcionários e presos, então isso significa que o isolamento é parcial.
Outra questão importante é ligada ao cumprimento da Resolução 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que orienta o judiciário para evitar contaminações em massa da COVID-19 no sistema prisional. Entre as medidas propostas está a soltura de pessoas de grupo de risco. Sabemos que essa decisão está sendo pouco cumprida no país. Existem notícias de que, até então, foram liberados 30 mil presos, mas cabe questionar: essas solturas aconteceram por que existe um fluxo normal de liberação ou por consequência da Resolução 62?
Uma pesquisa no estado de São Paulo, feita pela Fundação Getúlio Vargas(FGV) e Instituto Insper, mostra que o deferimento de pedidos de habeas corpus para presos pertencentes ao grupo de risco é inferior a 10%. Essa situação é similar no restante do país, ou seja, a resposta do poder judiciário à resolução do CNJ é muito baixa.
Dessa forma, o que acompanhamos é uma sequência de ações e protocolos que, quando são adotados, são mal aplicados devido ao despreparo dos servidores que atuam nesses espaços ou por negligência de seus gestores.
ASCOM: Essa mudança nas rotinas dos detentos e a ausência, muitas vezes total, do contato físico e social com outras pessoas, até mesmo da família, podem causar diversos problemas relacionados à saúde mental. Como você avalia a atuação das unidades prisionais sobre esse aspecto?
RC: Eu diria que quando se fala de prisão estamos com déficit de reflexão e de atuação em relação às consequências psíquicas do isolamento. Em outras palavras, a privação de liberdade produz sofrimentos e expressivas mudanças no sujeito encarcerado, já em tempos ditos normais, podendo ocasionar uma série de transtornos que vão desde a depressão à psicose.
Em situação de pandemia, a esses transtornos são acrescidos pelo menos dois fatores considerados importantes: a incerteza do que vai acontecer na condição de preso, gerando uma ansiedade que é redobrada pelo fato de não se ter contato com pessoas queridas. E o outro fator diz respeito aos familiares que, do lado de fora, se queixam de não saber o que está acontecendo com seus parentes na prisão. Há, inclusive, relatos da dificuldade dos presos de receberem cartas e encomendas dos seus parentes. Todo esse cenário agrava ainda mais a condição do ser humano no contexto de cárcere, ampliando as implicações para sua saúde física e mental.
É importante frisar que a situação dos presos não é comparável ao isolamento em nossas casas por conta do vírus. Temos algumas decisões judiciais que comparam o isolamento dos presos ao isolamento social, o que é um absurdo. Uma coisa é isolamento social e outra é segregação excludente em condições precárias, sem possibilidade de comunicação com os familiares.
ASCOM: Segundo dados do Painel de medidas de combate à COVID-19, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), até o dia 15 de junho, foram contabilizados 2.189 presos infectados pela COVID-19, com 789 suspeitas e 49 mortes, além de 8.708 testes realizados e 1.282 recuperados. Como avalia esses números?
RC: O Painel do Depen nasce como medida de prevenção da crítica, ou seja, para tentar mostrar que está tudo sob controle no sistema penitenciário. As primeiras notas emitidas pelo órgão diziam isso, ousando afirmar, inclusive, que as pessoas estavam mais protegidas dentro das prisões do que fora delas. Essa era a tônica das primeiras declarações do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Era um discurso que dizia: “estamos segregando para o bem”.
Após passar quatro meses da pandemia, deixo para cada um a reflexão sobre os números. Em 27 unidades da federação foram registradas 49 mortes. Significa que, em média, aconteceram menos de duas mortes devido à infecção da COVID-19, por estado. É evidente que esse número não expressa a realidade, denotando uma tendência à subnotificação, ou seja, nem todos os óbitos são informados como deveria. Isso acontece porque existe um problema metodológico, no sentido de não saber o que é contabilizado quando se fala de óbito no sistema. Por exemplo, quando um preso é encaminhado para o hospital em estado grave ou recebe decisão de prisão domiciliar e vem a óbito, ele já não é mais contabilizado nos dados do sistema prisional. Isso é uma maneira de manter os números de contaminados baixos.
Em maio, o Depen implantou no painel a informação dos números de recuperados pela COVID-19. O que acontece é que o número de detectados aumenta improvisadamente para poder afirmar que foram recuperados. Temos situações em alguns estados que o número de recuperados aumenta junto com o de infectados. Trata-se de uma manipulação de dados com o objetivo de transparecer que está tudo dentro normalidade no sistema prisional.
ASCOM: Como analisa a atuação do poder público no combate à COVID-19 no sistema carcerário?
RC: A análise pode proceder por dois caminhos, o primeiro é de anunciar uma ideia de proteção, que é sustentada por dois tipos de medidas, por um lado produzir números que demonstrem a eficácia da atuação do sistema prisional, e do poder público de modo geral, no combate ao vírus, a exemplo do painel do Depen. Por outro, deixar entender que algumas medidas foram tomadas, ainda que algumas delas se revelem extremamente problemáticas, como a proposta de abrigar presos em contêineres. Isso é o primeiro movimento anunciado de proteção à saúde pelo poder público.
O segundo movimento é dizer que as medidas de liberação constituem um prêmio indevido para os presos, porque o estado é intransigente e severo, e cuida da segurança pública através do castigo. Vemos isso claramente na imprensa, quando diz que os presos que foram liberados voltaram a cometer crimes. Essa afirmação se confirma apenas em proporção ínfima de casos, pois as pessoas que saíram do sistema penal são de baixa periculosidade e fazem parte do grupo de risco para a contaminação da COVID-19.
Eu avalio essa política em duas grandes vertentes, de proteção e de castigo intransigente, que no fundo acabam tendo efeitos danosos para a população carcerária. Ou seja, não vamos soltar essas pessoas porque aqui elas são cuidadas de uma melhor forma ou porque se forem liberadas vão gerar problemas de segurança pública e irão se subtrair à prisão ou à punição, supostamente merecida.
ASCOM: Como pesquisador dos Direitos Humanos e do sistema penitenciário do país, acredita que assegurar direitos básicos aos detentos é um desafio para o poder público no período da pandemia?
RC: Na verdade, garantir Direitos Humanos é um desafio para o Brasil há muito tempo, eu diria há tempos imemoráveis. Esse conceito ainda não permeia a consciência política da sociedade. Se a ideia de Direitos Humanos, nos tempos atuais ainda não chegou, imaginem a ideia de direitos para as pessoas que cometeram crimes. Acho que aqui tem o primeiro grande desafio que se agudiza na pandemia, que é entender que as pessoas precisam responder pelos atos que praticaram, dentro do respeito da lei e com dignidade.
Acredito que a pandemia tem um efeito de amplificação de uma pergunta que não cala: estamos voltados para uma política de respeito e cuidado com os presos, visando à inclusão? Ou a pandemia, em função do caos que provoca, oportuniza a promoção intensa e deliberada de uma política de morte?
Sabemos pelos canais de informação que o estado brasileiro é extremamente letal. Vejamos o que acontece com a atuação da polícia, em relação a um grupo específico da população, notadamente de jovens negros, que são os mesmos que constituem a base maior da população carcerária. Em vários momentos, o Brasil já foi criticado por não garantir direitos mínimos aos presos. A pandemia só faz exacerbar essa condição.
ASCOM: O Grupo de Pesquisa em Criminologia (GPCrim), com quase 12 anos de existência, nasceu com objetivo de estudar questões relacionadas ao sistema penal e as diversas instâncias do controle social, na sociedade feirense, baiana e brasileira. Como coordenador, qual avaliação faz do grupo na contribuição para o amplo debate e produção científica na área da Criminologia?
RC: O grupo de pesquisa foi se constituindo e se consolidando a partir do diálogo com os estudantes. É um grupo que atua, essencialmente, na graduação, porque não temos ainda cursos de pós-graduação em Direito nas universidades estaduais da Bahia.
O GPCrim tem fortalecido a capacidade de pesquisa dos participantes, tanto que a grande maioria dos egressos, que ainda fazem parte do grupo, fizeram carreiras acadêmicas importantes em mestrado e doutorado, e alguns já são professores. Por conta da própria impulsão e pelas experiências dos discentes, o grupo se voltou sempre para estudos do controle social nas vertentes de raça, gênero e classe. Eu diria que a vertente racial é aquela que mais se potencializou nos últimos anos.
Temos contribuições expressivas de pesquisas, essencialmente, qualitativas, sobre o funcionamento do controle social no viés racial, por entender que a raça e o racismo constituem uma dimensão que estrutura o funcionamento do sistema penal, quer seja na atuação da polícia, do judiciário ou no funcionamento das prisões.
ASCOM: O projeto “INFOVÍRUS – prisões e pandemias” é uma maneira da universidade se fazer presente na produção de conhecimento, no momento de pandemia, e de dar atenção ao sistema carcerário. Como surgiu a iniciativa e qual a sua importância para o sistema prisional?
RC: A iniciativa surgiu em conversas informais com integrantes de grupos de pesquisa em criminologia. A partir daí, professores manifestaram interesse pela ideia e, assim, avançamos com o projeto INFOVÍRUS. Por sinal, é um nome interessante que diz duas coisas importantes: nós produzimos informação sobre o vírus da COVID-19 e seus impactos, mas também podemos pensar a informação como um vírus, diante das fake news e da falta de transparência do poder público.
Entendemos que o INFOVÍRUS é primordial para a democracia. A nossa intenção é não só de confrontar os números de casos que são divulgados, mas também de contar histórias de vida dessas pessoas, como são tomadas as decisões do sistema de justiça criminal e como determinados grupos reivindicam direitos no âmbito penitenciário.
ASCOM: Qual cenário a COVID-19 pode deixar no sistema carcerário pós-pandemia?
RC: Creio que seja cedo para responder a essa pergunta, mas percebo que o sistema carcerário, não necessariamente, vai se tornar objeto de cuidados específicos, sobretudo, considerando que há falta de cuidado em relação à população brasileira como um todo. Se já não conseguem cuidar das pessoas em liberdade, por que vão se preocupar com os presos? Essa é uma grande inquietação: pensar que o contexto da pandemia justifica a máxima da política de segregação.
O que ronda o pensamento político é a ideia de que pessoas erradas precisam ser excluídas e depois eliminadas. Esse raciocínio é extremamente conservador, de caráter fascista. Trata-se de uma concepção que tende a promover uma uniformização da população em torno da ideia daquilo que é pensado como o bem. E, como consequência, as pessoas que não se adequam a essa configuração ideal precisam ser eliminadas.
Obviamente, um dos vetores desse pensamento é a prática do racismo, porque sabemos que nessa segregação da população existe a questão racial, segundo a qual vidas negras não importam.
ASCOM: De acordo com sua experiência de tantos anos atuando na área da criminologia e de convivência diárias com espaços e rotinas no sistema prisional, que reflexão deixaria sobre a condição humana no cárcere, sobretudo, em tempos de pandemia da COVID-19?
A pandemia nos coloca, de uma maneira geral, diante das nossas escolhas e prioridades, tanto na vida individual quanto social. No que diz respeito à situação carcerária, a pandemia gera um importante questionamento: queremos funcionar segundo os princípios da barbárie? Os grupos subalternizados, acusados de praticarem crimes precisam ser rebaixados à condição de seres não humanos e por isso podem morrer, em nome de uma possível segurança e da insensibilidade da sociedade?
A pandemia oferece a opção de repensar nossa maneira de olhar para as condutas criminalizáveis. Nós temos a possibilidade de ser muito mais criativos nas respostas ao crime, de tecer laços e envolver as pessoas no objetivo de valorizar a vida dos encarcerados.
Nossa dificuldade é não termos capacidade de pensar fora do castigo e da produção de dor para o outro. Precisamos ter sanções que permitam a reparação de danos, que permitam o atendimento às necessidades dos envolvidos no crime. Precisamos pensar políticas de inclusão e de emancipação, que permitam a essas pessoas construírem seus sonhos quando saem do sistema prisional.
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Riccardo Cappi é doutor em Criminologia e mestre em Ciências Econômicas, pela Universidade Católica da Lovaina, na Bélgica. Há 20 anos atua como professor do curso de graduação em Direito das universidades estaduais da Bahia (UNEB) e de Feira de Santana (Uefs). Possui experiência na área de Direito, com ênfase em Criminologia, desenvolvendo pesquisas sobre criminologia, direitos humanos, delinquência juvenil, racionalidade penal moderna e educação.
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