Em 10 de março de 2016, nós do movimento Médicos e Médicas pela Democracia, em Carta Aberta assinada por 270 profissionais, manifestamos nosso sentimento de estranheza diante do fato de a diretoria do Conselho Regional de Medicina da Bahia estar convocando participação de seus membros em manifestações políticas que visavam o impeachment da Presidente eleita.
Desde então, deteriorou-se sensivelmente a situação política, econômica e sanitária do país. O impeachment (na verdade, um golpe jurídico-político-midiático) foi consumado e a Presidente Dilma foi substituída pelo vice, Michel Temer. Ainda no governo de Michel Temer, foi aprovada a PEC dos Gastos, que impôs forte restrição aos investimentos e ao custeio da saúde, desde então.
Com a eleição de Jair Bolsonaro, a situação agravou-se ainda mais, devido ao descompromisso do novo governo com as diretrizes do Estado Social estabelecidos na Constituição Cidadã de 1988.
A pandemia do coronavírus apenas aprofundou a crise, e o Brasil foi acumulando dados negativos, tornando-se, diante de todo o mundo, o país que a enfrentou da maneira mais inconsequente, destacando-se em número de casos e de mortes.
O presidente Bolsonaro, desde o início da pandemia, tratou com menosprezo a gravidade da situação e desdenhou de todas as medidas preconizadas pela Organização Mundial de Saúde. Por inépcia e por deliberado descompromisso com a saúde, trabalhou contra o distanciamento social e o uso de máscara e higiene das mãos como estratégias de mitigação dos riscos da pandemia.
Pari passu, estabeleceu a falsa dicotomia entre “isolamento social X manutenção da atividade econômica” e “vacina X tratamento precoce”, mesmo sabendo-se que, mundialmente, as drogas indicadas para o referido “tratamento precoce” estavam descartadas com base em inúmeros estudos científicos.
Dentre as drogas que fazem parte do que convencionou-se chamar de “kit tratamento precoce” estão a cloroquina e hidroxicloroquina, adotadas sistematicamente em pronunciamentos do presidente da República. As drogas citadas, além de não apresentarem nenhuma ação no tratamento da COVID-19, apresentam inúmeros efeitos colaterais, sendo recomendada cautela em seu uso para tratamento das doenças em que são indicadas.
Ao invés de estimular a população a cumprir as medidas preconizadas pela OMS e trabalhar interna e externamente na busca pela vacina, o presidente agiu de forma irresponsável, criando um clima de insegurança e de caos, fazendo com que o Brasil totalize 10% das mortes do mundo, sendo que temos apenas 2% da população mundial.
Ficamos no final da fila da vacina, que somente foi aprovada recentemente, pela força do SUS, representado nesse episódio pela atuação do Instituto Butantan, da Fundação Oswaldo Cruz e da ANVISA, que agiu respeitando a ciência e se blindando contra interferências políticas indevidas.
Em que pese ter havido posicionamentos firmes das Sociedades de Especialidades, notadamente a Sociedade Brasileira de Infectologia (reforçados hoje por nota conjunta da Associação Médica Brasileira – AMB – e da Sociedade Brasileira de Infectologia – SBI) diante da insistência do governo em falsos tratamentos, os Conselhos Federal e Estaduais de Medicina omitiram-se até a presente data e continuam omitindo-se em se posicionar diante de condutas reprováveis de médicos e médicas pelo Brasil.
Passados quase seis anos, e sem obter nenhuma resposta do CREMEB, somos surpreendidos com a entrevista de Julio Braga, vice-presidente do CREMEB e Conselheiro Federal do CFM pelo Estado da Bahia ao site Bahia Noticias, em que ele fala sobre o não posicionamento do Conselho sobre a prescrição da cloroquina e outras drogas para tratamento da COVID-19 e “denuncia” a politização da discussão sobre o tema.
O primeiro equívoco é o que busca reduzir o papel do Conselho a punir ou não punir médico. A principal função dos Conselhos de Medicina é o de proteger a sociedade de práticas danosas à saúde da população. Punição ou não é consequência. No debate sobre “tratamento precoce”, os Conselhos teriam a obrigação de agir preventivamente, alertando a sociedade de que as drogas que fazem parte do “kit tratamento precoce” não trazem nenhum benefício ao paciente e podem colocar sua saúde em risco. Aos médicos, os Conselhos deveriam dizer que são condenáveis os atos médicos que estiverem em desacordo com a ciência e que comprometam a segurança do paciente.
Comparar o uso de medicamentos sabidamente nocivos ao uso de chás é, no mínimo, tergiversar sobre esse grave problema.
O segundo equívoco é colocar a autonomia do médico acima do que já está definido pela ciência e que, via de regra, deve nortear a boa pratica médica. A prescrição de medicamentos e outras terapêuticas não pode ficar subordinada a achismos e sua mera discussão entre o profissional e o paciente, devendo ser baseada em evidências cientificas disponíveis.
Tratando-se da cloroquina, o próprio médico francês Didier Raoult, mundialmente conhecido pela defesa da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19, foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF), por promoção indevida do medicamento. Recentemente, assumiu que o medicamento não reduz o agravamento nem a mortalidade pela doença.
Equivoca-se também o Conselheiro quando diz que ainda existe no mundo a discussão sobre o uso das drogas do “kit tratamento precoce”. Não há mais essa discussão em parte alguma do mundo. A própria ANVISA, agência governamental responsável pela área, enterrou essa discussão no Brasil, sendo esse um dos motivos para autorizar o uso emergencial das vacinas Coronavac e Oxford/AstraZeneca, no domingo próximo passado.
Por fim, o referido conselheiro afirma que o CREMEB não irá intervir se não ocorrerem “casos em que o profissional recomenda medicamentos visando lucro e enriquecimento pessoal, quando há interesse político, e quando prejudique a população, além dos casos de prescrição em massa.
Nesse aspecto, o CREMEB é, certamente, conhecedor de diversos casos de uso midiático da defesa do “kit tratamento precoce”, alguns compartilhados pelo presidente da República, de pacotes de medicamentos embalados em sacos plásticos, sob o falso discurso de “precisamos salvar vidas”. É pública e notória a utilização do tema com interesse politico, tendo sido fartamente noticiada pela imprensa.
Diante do exposto, nós, Médicos e Médicas pela Democracia, denunciamos que, mais uma vez, o nosso Conselho profissional abre mão do seu papel fiscalizador e orientador da categoria médica e se alinha ao negacionismo que compromete a boa prática médica e põe em risco a saúde da população.
Reafirmamos que o único caminho para vencermos a pandemia e retornarmos à normalidade é o do distanciamento social, o uso de máscaras e a higiene das mãos, aliados à vacinação em massa da nossa população.
Salvador, 19 de janeiro de 2021
Médicos e Médicas pela Democracia da Bahia